The Handmaid´s Tale: tudo seria diferente com um celular

por Viviane Loyola

The Handmaid’s Tale é uma série que imagina o futuro sem ser futurista. Inspirada no livro O Conto da Aia, de Margaret Atwood (1985), a série mostra um futuro no qual não se tem notícia de naves espaciais, robôs executando funções humanas, cenários de chuva ácida, desastres ambientais, uniformes de games ou carros elétricos. Não se vê sequer o uso sistemático do celular e os personagens não surgem assistindo televisão ou falando sobre séries, filmes ou mensagens recebidas no Whatsapp. Os eletrodomésticos, feitos em princípio para facilitar e acelerar atividades como cozinhar e limpar a casa, são abolidos. As mulheres devem se ocupar integralmente das funções de arrumação do lar e não possuem inserção no mercado de trabalho, direito ao estudo ou participação política. Elas nem sequer são ouvidas nas decisões sobre os rumos dos Estados Unidos que se apresentam sob o comando de um regime autoritário, de lideranças exclusivamente masculinas e de altas patentes militares.

O futuro da humanidade na série é descrito por meio de um olhar crítico e pessimista, mas não do ponto de vista da ficção científica. O pessimismo atribuído a vários desses filmes e séries de ficção diz respeito a críticas à degradação do meio ambiente, ocupação desenfreada do espaço urbano e utilização excessiva de recursos. É o futuro marcado pela escassez, pela guerra, pelo vício tecnológico, pelas relações virtuais. Em The Handmaid’s Tale a crítica é de outra natureza e o pessimismo se manifesta justamente na constatação das dificuldades do indivíduo de lidar com a liberdade adquirida pelas transformações que se deram nos últimos 50 anos nos campos da economia, da cultura e da tecnologia. As soluções encontradas apontam para uma tentativa de frear a liberdade em nome de mais segurança na família e nas instituições em geral e de valorizar modos de vida antigos e tradicionais. Ocorre uma negação, por exemplo, dos avanços ocorridos na área da reprodutibilidade humana – as mulheres devem parir filhos concebidos em atos sexuais mesmo que forçados, filhos do estupro, e mulheres inférteis não recorrem à inseminação artificial. Filhos de casais homossexuais, frutos de inseminação, são separados de seus pais por não terem sido gerados respeitando um “método natural” e autorizado pela Igreja. O pensamento religioso se sobrepõe ao científico e o direito da mulher de não querer filhos é duramente censurado.

No futuro de The Handmaid’s Tale, as mulheres são escravizadas para servir apenas como reprodutoras. Uma das formas de fazer com que estas se conformem e aceitem o destino de parideiras, restringindo-se ao espaço doméstico e obediência aos homens, é a supressão dos dispositivos tecnológicos, a ausência de comunicação com o exterior, a solidão e a falta de noção sobre o que acontece no mundo. A tecnologia se apresenta como um risco ao sistema político vigente: possibilidade de denúncia sobre os abusos cometidos pelos líderes e de troca de experiências com regimes democráticos, o que suscitaria o desejo de liberdade. No futuro de The Handmaid’s Tale, ao contrário de muitas ficções futuristas, o problema não é a dependência tecnológica, mas a impossibilidade de comunicação, o isolamento forçado, o cerceamento da liberdade e da mobilidade informacional ou física. Em vários momentos os personagens se perguntam: O que será que o mundo está pensando e dizendo sobre nós nesse momento?  Será que apoiam o regime totalitário? Perguntas como essas sobre o que acontece nos países vizinhos ou mesmo em estados vizinhos se mostram frequentes e geram angústia por se apresentarem como perguntas sem respostas.

O vácuo tecnológico é um dos fatores que contribuem para o medo e a perpetuação do regime autoritário no poder. Tudo é desconhecido e inalcançável. Tudo é negado e conflituoso. Fica evidente a tese de que uma das primeiras medidas tomadas por regimes autoritários é o controle da informação, a censura da imprensa, a supressão de vistos de entrada e saída do país. Tais medidas se tornam particularmente difíceis em um mundo globalizado, hiperconectado, em que a troca é incentivada o tempo todo. Talvez um dos motivos da série apresentar tantas cenas chocantes seja a necessidade do uso de métodos muito violentos para se obter êxito nesse controle da informação. As punições dadas aos que tentam escapar e as leis rígidas sobre os que estabelecem “contatos indevidos” são demonstrações de como a liberdade de comunicação e de trânsito constitui a maior de todas as ameaças ao regime.

São várias coisas que poderiam ser ditas sobre The Handmaid´s Tale, série que compensa muito ser vista, mas um dos aspectos que mais chama atenção é justamente este futuro que se assemelha ao passado, este futuro sem tecnologia, sem comunicação à distância, sem intercâmbio cultural. E se a série se apresenta como um alerta sobre o crescimento do pensamento autoritário e conservador no mundo devemos estar especialmente preocupados com propostas de cerceamento de liberdades e do uso de tecnologias ou quem sabe a manipulação de dados nesse espaço virtual e apropriação indevida de informações pessoais. The Handmaid´s Tale nos faz pensar que a tecnologia, que muitos apontam como a prisão moderna, é também libertadora do indivíduo porque aguça o desejo, provoca o contato, dá voz a mais gente, possibilita a troca. Vontade louca, assistindo a série, de dar um celular a uma daquelas mulheres enclausuradas. Um celular já faria toda a diferença. Quanta falta faz um celular.

por Viviane Loyola

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