Killing Eve: uma série contrária aos estereótipos de gênero

por Viviane Loyola

Killing Eve é uma série de mulheres protagonistas: Eve (Sandra Oh) e Villanelle (Jodie Comer).  Elas são completamente obcecadas uma pela outra, rivais que se parecem no destemor, na vaidade do trabalho, na personalidade metódica, na atitude egocêntrica. O jogo de gato e rato entre a agente de inteligência Eve e assassina Villanelle é o que sustenta a série. Duas personagens femininas fortes, nada estereotipadas:  não são vítimas nem submissas a ninguém, buscam poder, não são dependentes da aceitação masculina, bancam suas vidas, surpreendem por fugir ao padrão das vilãs e heroínas, não reproduzem estereótipos de gênero. Lembrando que estereótipos de gênero são preconceitos generalizados sobre atributos ou características que homens e mulheres possuem ou deveriam possuir ou sobre o que eles podem ou não fazer. As telenovelas, os filmes e as séries normalmente nos apresentam muitos estereótipos de gênero e estes se revelam prejudiciais na medida em que contribuem para reduzir as ambições e limitar as opções profissionais de muitas mulheres.  

Eve Polastri é uma agente do MI5, inicialmente responsável por funções burocráticas, que se realiza quando tem a oportunidade de desvendar crimes e combater criminosos. Ela sempre teve essa ânsia pelo trabalho de campo e prefere trabalhar sozinha. Não gosta de receber ordens. O trabalho é uma obsessão, perde noites de sono tentando solucionar enigmas, faz anotações em casa até tarde, entre uma cerveja e outra, enquanto o marido tenta lhe chamar atenção para a relação dos dois. Ela tem um caso complicado a resolver: precisa prender uma assassina em série. Ter o mérito de descobrir sua identidade, a maneira como opera e prendê-la torna-se sua principal meta. Tudo mais parece tedioso, sem sentido. Eve deixa em segundo plano as relações afetivas, os afazeres da casa, e só demonstra preocupação com sua aparência quando confrontada pela assassina Villanelle. É ela quem desafia Eve, quem a tira da zona de conforto, habita seus sonhos, agita sua vida. Fica evidente que o casamento, a vida que levava antes, não a satisfazia.  Eve deseja viver situações perigosas, conhecer pessoas diferentes, realizar o grande feito profissional de prender a assassina que passa a admirar. A vida de uma é modificada pela existência da outra.        

Além do caráter aventureiro da personagem, chama atenção ser uma protagonista de descendência asiática, Sandra Oh, longe do estereótipo das protagonistas americanas. A personagem Eve é retratada em toda sua complexidade e ambiguidade. Ela pode ser destemida, insegura, vaidosa, relapsa, irreverente, teimosa, atraente, misteriosa. Todas essas contradições são parte da formação de uma personagem cativante, ambivalente,mas se diluem diante de sua principal característica: a paixão que Eve imprime àresolução do caso. Ficam evidentes seu desejo e sua ambição, seu comportamento obstinado e obsessivo. Às vezes a consideramos até ingênua, tomada pela paixão ela se coloca em perigo, e ainda assim torcemos por ela e por Villanelle. Torcemos pelas duas, pela dinâmica que se instala entre elas, como se uma desse a outra a possibilidade de se testar, de ultrapassar limites. O público é envolvido pelas duas personagens, tudo gira em torno de mulheres que não são exemplos morais, não devem ser copiadas em seus comportamentos, mas evidenciam a força feminina. Até mesmo o apelo sexual entre elas evidencia o desejo de independência, personalidades que se descolam das normas, guiadas por um quase instinto.                      

Villanelle, personagem de Jodie Comer, não é apenas uma serial killer odiosa. A maneira como a personagem nos é apresentada, e obviamente a performance certeira da atriz, nos desperta empatia e torcida, nos faz achá-la engraçada em diversos momentos.A série começa retratando os extremos, o que é bom e ruim, o certo e o errado estãorepresentados por cada uma das personagens. A assassina e a justiceira. Quem mata e quem prende. Até nos faz lembrar uma narrativa tradicional que visa colocar uma mulher contra a outra, a heroína e sua antítese, nos obrigando a tomar partido da heroína. Mas, aos poucos, percebemos que elas são parecidas, interdependentes, e se sentem atraídas uma pela outra. Vamos enxergando defeitos e qualidades em ambas. É uma distorção porque a série nos faz ter simpatia por uma psicopata. Outras séries já fizeram isso, mas os psicopatas amados eram homens, como no caso da série Dexter.  

O cuidado na criação de uma assassina capaz de cativar o público é perceptível. Villaneulle se destaca por seu visual elegante, suas tiradas inteligentes, seu jeito irônico. Tem uma personalidade excêntrica, exuberante, chama atenção em qualquer lugar. O cinismo da personagem, um dos pontos altos da série, é explicado por sua história. Sua identidade LGBTQ é um adendo importante, mais uma forma de demonstrar seu caráter transgressor. Sua sexualidade é fluida, liberta. Pode se relacionar com homens e mulheres ao mesmo tempo. Ninguém questiona suas escolhas. Tudo se passa com naturalidade. O problema está em como essa personagem transgressora é também desprovida de sentimentos. Não parece ter a capacidade de se apaixonar, de esboçar sentimentos verdadeiros por quem quer que seja. Quer brincar. Será com Eve é diferente?            

Os personagens masculinos de Killing Eve gravitam em torno das protagonistas. Eve e Villaneuve tomam conta. Todos os demais são vítimas e coadjuvantes de suas artimanhas. Sandra Oh encontra espaço para mostrar todo seu talento, com um roteiro que não a mantém submissa a nada. A atriz entrega sua melhor performance desde Cristina Yang, personagem de Grey´s Anatomy, pela qual ela ganhou uma horda de fãs. Jodie Comer não fica atrás em sua performance. Há vários motivos pelos quais assistimos a uma série, o ritmo, a narrativa, o suspense, o humor etc. Consigo identificar vários desses elementos em Killing Eve, principalmente em sua primeira temporada, mas confesso minha felicidade em assistir uma série protagonizada por duas mulheres. Ainda mais por uma delas, Sandra Oh, ter cinquenta anos. A indústria do entretenimento sabe ser cruel com mulheres acima de 40 anos e a série traz uma veterana e uma jovem atriz, Jodie Comer, em pé de igualdade, em papeis marcantes. Não há dúvidas, grande parte do sucesso de Killing Eve é essa aposta em mulheres talentosas e personagens não estereotipadas. Tomara, após seu término anunciado, sua quarta e última temporada estreia em 2022, possamos assistir outras séries com propostas semelhantes.

A coluna Séries que Compensam é escrita, quinzenalmente, por Viviane Loyola

Também compensa:


Sobre os autores

Acompanhe