Anita Malfatti, a mulher no front do modernismo brasileiro

por Juliano Mignacca


Anita mistura tintas na palheta. Em seguida, observa as variações cromáticas sobre o mar da ilha de Monhegan, nos Estados Unidos. É verão de 1915. Olha novamente o oceano e desliza o pincel na tela com gestos rápidos e precisos. O colorido não corresponde à tonalidade natural da paisagem retratada. O interesse é na cor. O enquadramento escapa do convencional. Aos poucos, surgem obras que se tornariam um marco do modernismo brasileiro.

Rochedos (Monhegan Island), 1915
De volta a São Paulo, aos 26 anos, Anita recebe seu primeiro golpe. A família se decepciona com a característica de seus quadros. Ela então engaveta tudo, mas continua pintando enquanto os dias passam na provinciana São Paulo. Entediada, envia uma pintura para o Concurso do Saci, promovido por Monteiro Lobato, que na época atuava como crítico de arte. Ao comentar sobre os trabalhos no jornal O Estado de S. Paulo, ele descreve o de Anita como decadente: “Onde já se viu uma estrada vermelha?”. Anita recebe seu segundo golpe.
Tal acontecimento, no entanto, despertou a atenção do jornalista Arnaldo Simões Pinto, diretor da revista Vida Moderna, e do artista Di Cavalcanti sobre a pintora. Papo vai, papo vem, convenceram a jovem a realizar uma exposição. Em dezembro de 1917, um salão da Rua Libero Badaró, no centro da capital paulista, abrigou 53 obras de sua autoria e de outras colegas de curso nos Estados Unidos.
 
A Onda, 1917

Anita exibiu trabalhos do período em que morou na Alemanha, nos Estados Unidos e outros mais recentes, após seu regresso ao Brasil. Esses últimos dialogavam com a temática nacionalista que estava em voga na época, como é o caso da obra Tropical (1916). Mas foram os quadros realizados na ilha de Monhegan que se tornaram o combustível para a controvérsia que viria a seguir. Foi nesse momento que Anita deixou de ser simplesmente uma artista para se tornar Anita Malfatti, precursora da arte moderna no Brasil.


Tropical, 1916


O Homem Amarelo, 1917


Seu trabalho era vanguardista, possuía um vocabulário novo. Diferentemente de seus pares, que iam estudar na França ou na Itália, Anita Malfatti foi se aprimorar em Berlim, terra do expressionismo. Tudo o que viu e aprendeu ao longo dos quatro anos em que permaneceu por lá, acabou reverberando em suas pinturas realizadas nos Estados Unidos em 1915.  

De início, a exposição foi um sucesso. Até que surge novamente a figura de Monteiro Lobato, cuja crítica negativa no O Estado de S. Paulo, intitulada, “À Propósito da Exposição Malfatti”, teve enorme repercussão. Das oito telas vendidas, cinco foram devolvidas. Era o terceiro e derradeiro golpe contra Anita.
A Boba, 1916

Desde então, ao longo desses cem anos, Anita Malfatti versus Monteiro Lobato tornou-se um dos maiores “derbys” na história da critica de arte no Brasil. Para trazer à luz a polêmica, que ainda perdura, é preciso ir aos fatos. Não foi exatamente a crítica desfavorável de Lobato que criou todo o rebuliço, mas, sim, o efeito que teve sobre o trabalho posterior da pintora. A história da arte nacional condenou Lobato pelo retrocesso artístico a que ela, supostamente, teria se submetido. De acordo com a maioria dos especialistas, Malfatti nunca conseguiu se recuperar daquela crítica. O episódio teria levado a artista a renunciar sua inclinação vanguardista em prol de um estilo mais próximo do realismo-naturalismo.

Segundo Tadeu Chiarelli, em seu livro Um Jeca nos Vernissages (1995), a maioria dos estudiosos da arte moderna brasileira divulga opiniões distorcidas a respeito do tema. Primeiro porque Lobato não dirigiu uma critica especifica contra Anita, mas contra as vanguardas europeias. Era defensor de uma arte brasileira cuja estética deveria ter uma percepção naturalista. Não endossava artistas afetados pelos “ismos” da Europa.

Cambuquira, 1945

Ainda de acordo com o autor, o que houve foi uma enxurrada de acusações de toda ordem contra Lobato. Taxaram-no de pintor frustrado, inapto para exercer crítica de arte, defensor de uma estética retrograda que corrompeu o processo criativo de Anita.  O fato é que se pode discordar de Lobato, mas jamais negar as intenções de um projeto proposto por ele cujo viés plástico fosse uma arte com temas, cores e aspectos brasileiros. Seu apoio a uma arte naturalista não era de todo um contrassenso, pois já era uma ruptura contra o academismo ao qual Lobato fazia oposição.

Mário de Andrade, 1922

Se, para os futuros modernistas paulistas, Lobato se tornou um algoz, Anita Malfatti foi elevada a símbolo do movimento que resultaria, alguns anos mais tarde, na Semana de Arte Moderna de 22. Conforme sustenta Chiarelli em seu livro, Anita teve um “retorno à ordem” em suas pinturas logo que chegou ao Brasil, em 1916. O tratamento intenso de cor e formas voltou para um plano mais convencional. No período que antecedeu à exposição de 1917, ela realizou obras com temas bem brasileiros, quase todas, infelizmente, desaparecidas. Restou ao menos uma delas, a tela Tropical, pertencente ao acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo.  

 
Mulher do Pará no Balcão, 1927

O que teria levado Anita a inclinar-se por uma pintura mais conservadora ainda é motivo de debate. Seria por que estava difundido o projeto de arte com temas e cores brasileiras? Seu temperamento? Ou o “retorno à ordem” teve início quando a família se decepcionou com seu trabalho realizado nos Estados Unidos? Uma mistura de tudo, talvez? Não se sabe ao certo. São conjecturas. O fato é que na época já havia uma nova tendência para o regionalismo, um olhar para dentro das próprias raízes. Além disso, vários artistas europeus como Picasso e Matisse iniciavam um período mais sóbrio das vanguardas após a Primeira Guerra Mundial.

Samba, 1945

Apesar da associação que a história da arte faz entre Malfatti e Lobato, é preciso entendê-los separadamente. Ele foi possivelmente o mais importante e preparado crítico de arte no início do século XX; ela, na outra ponta, a “bandeirante” paulista das artes plásticas. Mesmo assim, o mito do embate entre os dois perdura até hoje. É compreensivo que, cem anos depois, aquele vanguardismo de Anita não nos cause mais o mesmo impacto. Seria até anacrônico. Mais sorte daquele que se deleita com o vigor estético das obras, sem se apoiar tão somente no contexto histórico. Afinal, para que serve a arte?

La Rentrée (Interior), 1925-27

 

por Juliano Mignacca


O Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) realizou, em 2017, a exposição Anita Malfatti: 100 Anos De Arte Moderna. A mostra contou com um recorte do trabalho da pintora dividido em três fases: a modernista, a produção naturalista e os temas populares do final da carreira.

 








Tadeu Chiarelli, Um Jeca nos Vernissages (1995)







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