De Duchamp a Abramovic: um século de controvérsias

por Juliano Mignacca

“Será arte tudo o que eu disser que é arte.” A declaração de Marcel Duchamp, feita há um século, deixou o caminho totalmente livre para as artes plásticas. Ao propor, em 1917, um urinol como um objeto de arte, Duchamp procurou demonstrar que o artista não poderia competir com a eficiência industrial. Ele e outros dadaístas colocaram em xeque a ideia do artista-artífice. Tal ruptura permitiu o surgimento de diferentes manifestações artísticas, que não mais dependeriam de suportes tradicionais como a tela, moldura ou objetos escultóricos. Nasce, então, uma nova concepção crítica. A arte não precisaria mais ser legitimada pelo seu contexto histórico ou estético, mas sim por um discurso da subjetividade.

 

Marcel Duchamp, Fontaine, 1917

É inegável que, por meio de instalações, performances e reproduções, interessantes criações foram surgindo no decorrer do tempo. Mas é também verdade que isso levou as artes plásticas a uma crise de identidade, uma vez que tudo passou a ser considerado arte, e todos em artistas. A pergunta continua sem resposta: o que é arte? E o que não é?
Ao longo da história, houve quem a determinasse. O veredicto já passou pela Igreja, academias, salões, museus, galerias e, claro, pela crítica especializada. Mas como compreender o que credencia certas obras contemporâneas que nos causam estranheza e nos desconcertam? Não é preciso uma avaliação muito criteriosa para perceber um aglomerado de coisas que nada dizem ou dizem muito pouco. Não são poucas as obras desprovidas de qualquer linguagem ou simbologia, ausentes de técnica ou estética que não fariam jus sequer a uma tênue reflexão.

 

O crítico Clement Greenberg, diante de um ‘Kenneth Noland’, em 1966

Em casos mais extremos, o suporte onde a arte deveria se materializar simplesmente deixou de existir. Ele saiu de cena para, em seu lugar, entrar o próprio artista. Em 2010, por exemplo, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA) foi palco para a performer Marina Abramovic. A sérvia, então com 63 anos de idade, celebrou quatro décadas de carreira com uma retrospectiva de seu trabalho, ilustrado por meio de fotos, vídeos e objetos. No sexto andar daquele edifício o público se acotovelava para ter uma experiência direta com uma performance sua intitulada The Artist is Present. Abramovic passou três meses sentada em uma cadeira de madeira, 7 horas por dia, seis vezes por semana, sem comer, beber ou ir ao banheiro. O visitante podia sentar-se diante dela, em silêncio, para vivenciar o contato cara a cara pelo tempo que desejasse ou aguentasse. Não foram poucas as reações inusitadas dos espectadores. Muitos caíram em lágrimas. Tal efeito levou à criação do site “Marina me fez chorar”. Abramovic tem em seu currículo muitos trabalhos explorando seus próprios limites físicos e mentais, no intuito de estabelecer uma comunicação o mais interativa possível com o espectador. Em Rhythm 0, de 1974, ela se oferecia à intervenção direta do público, autorizando-o a manipular objetos em seu corpo. À sua disposição havia, entre outras coisas, pena, mel, tesoura, rosa com espinhos e até mesmo um revólver carregado. Ocorreram várias atitudes agressivas, inclusive um visitante que chegou ao extremo de apontar a arma para sua cabeça.

 

Marina e Ulay, o grande amor da vida dela, no MoMa

Em certa ocasião, quando um critico lhe perguntou sobre a diferença entre teatro e performance, Marina Abramovic foi taxativa: “Teatro é mentira. A faca não é real, o sangue não é real, as emoções também não são. Performance é o oposto.” Seu trabalho tornou-se notório em vários países, ganhando espaço em galerias, museus e bienais. Explicações teóricas da própria artista e dos críticos não faltam. Citando o filósofo e crítico de arte Arthur Danto, “o que determina o valor de um artista passa a ser sua capacidade de inserção no sistema da arte, através de uma rede de relacionamentos com marchands, galeristas, curadores, colecionadores e críticos”. Mas, aparentemente, quem assegurou o sucesso dessa performance de Abramovic foi o próprio público. The Artist is Present levou nada mais nada menos que 850 mil visitantes ao MoMA. É claro que somente uma parcela dessa multidão teve a chance de se sentar diante da artista sérvia. De qualquer forma, como explicar esse fenômeno? O que despertou tamanho interesse do público? Duchamp seria mais pragmático se tivesse afirmado: “Será arte tudo que estiver em um museu’’.

 

por Juliano Mignacca

 

Rhythm 0, 1974

 

Documentário de Matthew Akers e Jeff Dupre sobre a exposição, 2012

 

Coluna: ARTE

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