Sarah Kane e a dor da condição humana

por Rodrigo Morais Leite
“Só há um problema filosófico verdadeiramente sério:
 o suicídio.”
Albert Camus
 
Normalmente apontada como a melhor dramaturga inglesa de sua geração, Sarah Kane (1971-1999) não viveu o suficiente para produzir uma obra volumosa. Em sua curta existência, escreveu apenas cinco peças de teatro, das quais a mais conhecida é, sem dúvida, Psicose 4.48, não por acaso a derradeira delas. Composta quase toda à maneira de um desconcertante fluxo de consciência, Psicose 4.48 poderia ser definida como o testemunho de uma mente doentia, à beira do completo esfacelamento. Tal particularidade se revelaria fatídica, visto que, pouco tempo depois de finalizá-la, Sarah Kane acabou se matando, enforcando-se no banheiro de um hospital de Londres, onde estava internada por causa de problemas psiquiátricos. Em tempo: 4.48 seria o horário exato em que, supostamente, a maioria dos suicídios acontece.
 
 
Apesar de se tratar de uma obra a um só tempo mórbida e hermética, ela alcançou sucesso universal, ganhando montagens em diversos países. No Brasil, desde que foi traduzida para o português daqui por Laerte Mello, vira e mexe aparece uma nova, cada qual contendo alguma singularidade. Sendo Psicose 4.48 uma peça de caráter bastante performativo, ou seja, repleta de lacunas cujo preenchimento somente a encenação pode dar conta, já apareceram montagens com um, dois e até com oito atores em cena. Independentemente, contudo, de sua materialização cênica, a última peça de Sarah Kane se presta a intrigantes interpretações filosóficas, relacionadas aos motivos que teriam levado a autora ao suicídio. Embora obscurecidas por detrás de um discurso lírico, descomprometido de uma lógica racionalista, Psicose 4.48 apresenta algumas pistas reveladoras em relação às angústias que um dia atormentaram a alma de Kane. A esse respeito, vale lembrar que a palavra angústia vem do latim angustus, que significa apertado, reduzido. Nesse sentido, a cena 21, talvez a mais bela da peça, metaforicamente falando, seria o nó do laço que, estreitando-se cada vez mais, um dia viria a sufocá-la:
Atingir objetivos e ambições
Superar obstáculos e atingir alto padrão
Aumentar autoestima pelo sucesso do exercício do talento
Superar a oposição
Ter controle e influência sobre os outros
Me defender
Defender meu espaço psicológico
Justificar o ego
Receber atenção
Ser vista e ouvida
Excitar, surpreender, fascinar, chocar, intrigar, divertir, entreter ou atrair os outros
Estar livre de restrições sociais
Resistir à coação e à constrição
Ser independente e agir conforme o desejo
Desafiar a convenção
Evitar a dor
Evitar a vergonha
Eliminar humilhações passadas recapitulando ações
Manter o autorrespeito
Reprimir o medo
Superar a fraqueza
Pertencer
Ser aceita
Se aproximar e se relacionar reciprocamente com o próximo
Conversar de maneira amigável, contar histórias, trocar sentimentos, ideias, segredos
Comunicar, conversar
Rir e contar piadas
Conquistar a afeição do Outro desejado
Aderir e manter-se fiel ao Outro
Gozar experiências sensuais com o Outro imaginado
Ser alimentada, ajudada, protegida, confortada, consolada, apoiada, cuidada ou curada
Construir uma relação agradável, durável, cooperativa e recíproca com o outro, com um semelhante
Ser perdoada
Ser amada
Ser livre
O arremate de Psicose 4.48, isto é, sua frase final, poderia ser interpretado como um último suspiro da personagem-autora, mas não um suspiro amargurado e temeroso do porvir, como seria razoável supor. Nada disso. Em sua singeleza metateatral, ele chega a ser jubiloso: “Por favor abram as cortinas”.
 
por Rodrigo Morais
Coluna: Teatro
 
 

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