Ressignificando Shakespeare

por Rodrigo Morais Leite

A Tempestade, último trabalho do Teatro dos Novos (BA), é uma montagem do texto shakespeariano que, em sua concepção cênica, investe boa parte de seus recursos na composição de um clima, uma atmosfera. Contudo, ao contrário do que normalmente sucede em montagens afins, tal atmosfera não tem nada de colorida e vistosa, algo peculiar ao universo da fábula no qual a peça se insere.

Inclinando-se para o extremo oposto disso, ela se mostra deveras lúgubre, soturna, devido à combinação de certos elementos como, por exemplo, o cenário, o figurino e a luz. Tanto o primeiro como o segundo se caracterizam pela utilização somente de cores neutras, ou seja, o branco, o preto e o cinza, basicamente. Já o terceiro tem na luminosidade entrecortada e rarefeita a sua marca.

Do universo da fábula se verificam apenas a acronia (abstração do tempo) e a utopia (no sentido etimológico da palavra, a abstração do espaço, o “não-lugar”). Compreendendo o último conceito em seu sentido mais largo, tal como utilizado por Thomas More, de um lugar perfeito e ideal, a ambientação propugnada em A Tempestade sem dúvida sugeriria muito mais uma distopia do que, na verdade, uma utopia. Para configurar semelhante indeterminação de tempo e espaço, destaque à elaboração do figurino, especialmente aquele utilizado pelas personagens dos náufragos nobres – que, graças à magia de Próspero, assomam à sua ilha.

Apesar de vestirem austeras casacas típicas do período elisabetano, com direito àquelas enormes golas arredondadas, em lugar das espadas encontradas nas rubricas do texto, tais personagens aparecem em cena portando na cintura modernas pistolas automáticas. Trata-se, claro, de uma proposição conscientemente anacrônica, que só reforça o caráter atemporal apontado acima.

“Pairando” sobre todos esses componentes visuais, encontra-se a sonoplastia do espetáculo. Composta de matrizes pré-gravadas associadas a instrumentos executados ao vivo (em especial teclado, guitarra e contrabaixo), ela é praticamente onipresente em A Tempestade, acompanhando o desenrolar da ação, com poucas interrupções, do início ao fim. Como não poderia deixar de ser, seu comparecimento complementa e reforça o cunho sombrio conferido à obra em análise.

Além disso, a sonoplastia de A Tempestade parece ambicionar, mais do que a composição de uma atmosfera, estando ela em consonância ou não com a peça, a instauração de uma espécie de paisagem sonora, de modo que a cena evocasse algo como uma instalação, tal qual essa modalidade artística é encarada no campo das artes visuais.

Embora se compreenda, sem reservas, o uso de um expediente dessa natureza, é possível objetar que ele, de certa forma, acaba se chocando com uma outra proposta cara ao espetáculo, que vem a ser a valorização atribuída ao texto. Valorização, acrescente-se, mais ligada à sua materialidade do que, ver-se-á adiante, ao seu aspecto semântico.

Contendo, a rigor, somente um corte, precisamente uma cena do quarto ato em que Juno, Ceres e Íris surgem na ilha para bendizerem a união de Miranda e Ferdinand, a encenação assinada por Márcio Meirelles procura se manter, enquanto projeto, o mais fiel possível ao original shakespeariano. Isso se verifica, com mais propriedade, no trabalho dos atores e atrizes, cuja recitação procura respeitar escrupulosamente a prosódia prevista na métrica encampada por Shakespeare, o pentâmetro iâmbico. Na língua portuguesa, este equivaleria ao verso decassílabo, aquele utilizado por Bárbara Heliodora ao verter a peça para o nosso idioma.

Do ponto de vista aqui defendido, essa onipresença da sonoplastia acaba, em última instância, “oprimindo” o texto, na medida em que este se vê impedido, por assim dizer, de “respirar” adequadamente, tão espessa é a massa sonora que se lhe sobrepõe. Apesar de boa parte do elenco se aparelhar de microfones, nem sempre esse recurso é garantia de uma apreensão fluente dos diálogos, algo de suma importância em uma montagem que procura explorar o texto em toda a sua potencialidade literária e teatral.

A desvantagem trazida pelos microfones estaria principalmente no fato de eles impedirem, em algumas cenas coletivas, que se identifique com rapidez quem seria o emissor ou a emissora dos diálogos, consequência da amplificação e, por extensão, do direcionamento uniforme conferido às suas falas.

Miranda Autômata

Ainda atendo-se aos aspectos cênicos de A Tempestade, chama a atenção o fato de duas personagens da história (Ariel e Miranda), a primeira masculina e a segunda feminina, serem interpretadas, respectivamente, por uma atriz e um ator. Semelhante inversão, se pode interpretar, decorreria do propósito da encenação em mexer com as noções tradicionais de gênero ainda em voga, que só admitem, em seu (restrito) horizonte, modelos absolutos e estanques. No caso específico da personagem de Miranda, o travestimento também poderia ser atribuído a um item de ordem histórica: na Inglaterra dos tempos de Shakespeare, todas as personagens femininas eram interpretadas por atores, em razão de o trabalho no palco ser vetado às mulheres.

Não se subtraindo às questões mais urgentes da atualidade, dentre as quais o feminismo, o papel de Miranda se mostra providencial nesse sentido, por se tratar de uma menina impedida de exercer suas vontades, manipulada que é pelo pai em função de interesses políticos. A mulher, enfim, utilizada como um joguete nas mãos de homens poderosos, uma situação não muito rara na obra do bardo inglês (basta lembrar de Ofélia, Desdêmona e outras personagens).

Para ressaltar cenicamente esse elemento patriarcal oferecido pela peça, sem dúvida com a intenção de criticá-lo, na sequência do enlace matrimonial de Miranda com Ferdinand, aquela passa a ser representada como uma autômata, isto é, como uma figura inanimada manejada por forças alheias. Tratando-se de um bom achado em termos de dramaturgia cênica, cabe perguntar se a encenação não poderia ter recorrido a ele, quem sabe, desde as primeiras cenas em que Miranda aparece, deixando explicitada, de imediato, essa crítica ao patriarcalismo.

O elenco que compõe o novo trabalho do Teatro dos Novos poderia ser dividido, basicamente, em três núcleos: o coro feminino, que teria a função precípua de preencher as entrecenas, algumas de difícil solução; o núcleo representado pelas personagens de origem nobre europeia, que não por acaso detêm o privilégio dramatúrgico da expressão em versos; e aquele composto de personagens rebaixadas socialmente, como o escravo Caliban e os náufragos plebeus.

Quanto ao coro de mulheres, registre-se que, além de preencher as entrecenas, também lhe foram atribuídas outras funções em A Tempestade, dispostas a dotar o espetáculo de uma maior plasticidade e de outorgar ao ponto de vista feminino a missão de comentá-lo corporalmente.

Em relação aos outros dois núcleos, salta aos olhos a divisão racial que os determina: enquanto os atores brancos se encarregam dos papéis mais elevados, aos negros foram destinados os mais baixos e grotescos na escala da peça. Embora uma divisão assim concebida tenha, de início, surpreendido negativamente este espectador, por considerá-la extemporânea e alienada politicamente, ao término do espetáculo, graças a uma intervenção providencial da encenação, ela acaba se justificando.

No final estipulado por Shakespeare, Próspero, por meio de um solilóquio, após reaver o seu Ducado e se vingar (pacificamente) de seus inimigos, renuncia à arte da magia. Esse desfecho costuma ser interpretado de duas maneiras, uma interligada à outra. Por um lado, ele representaria uma certa ideia de boa governança, alicerçada em um poder legítimo e, além disso, exercido nos moldes de uma sapiência serena. Por outro, a renúncia à magia conotaria uma admoestação ao leitor(a)-espectador(a): ao retornar a Milão, Próspero não mais poderia se valer dela, pois no mundo da “realpolitik”, ela não teria lugar. A boa governança só se alcança, com efeito, por obra e graça da ação humana. Ação política, claro.

No epílogo sobreposto ao desfecho original, Caliban, após uma malsucedida tentativa de se vingar de Próspero, em que termina ridicularizado por seu algoz, surge novamente em cena, agora para realizar o seu intento. Enquanto Próspero, no proscênio, recita o referido solilóquio, Caliban, vindo do fundo do palco, e com uma faca na mão, golpeia de surpresa o protagonista, que morre no apagar das luzes.

Uma intervenção dessa ordem, não há como negar, traz inúmeros desdobramentos do ponto de vista semântico, de um modo tal que, ao fim e ao cabo, toda a peça de Shakespeare tenha que ser necessariamente ressignificada. Se, antes, Próspero se destacava como um herói típico do humanismo renascentista, capaz de guiar os seus iguais e, ao mesmo tempo, de submeter os que lhe seriam desiguais (como Caliban, associado ao primitivismo de povos não-europeus), agora se trata exatamente de negar essa visão eurocêntrica presente na obra do bardo.

Nesse sentido, a opressão exercida por Próspero sobre Caliban deixa de ser vista como algo normal, inserida que está no âmbito de uma cultura ensimesmada e cabotina, para assumir uma outra conotação. Esta, muito sumariamente, desloca o antagonismo básico da peça, centrado na disputa entre Próspero e os usurpadores do Ducado de Milão, para o jugo do homem branco europeizado em relação a culturas que não lhe são tributárias. Donde se explica, finalmente, a escolha de atores negros para os papéis “secundários”.

Na ótica de alguém que já conhece o enredo da peça, enriquecida pela realização de outras leituras afins, o final alternativo proposto pelo espetáculo, embora legítimo, tende a soar repentino demais, visto que o deslocamento comentado acima, ao contrário do que pode parecer, não se apresenta explicitamente no decorrer do trabalho. Tal mudança de perspectiva é o resultado de uma solução, dir-se-ia, deus ex machina, ou seja, que decorre de uma intervenção exógena, tanto no concernente à dramaturgia propriamente dita quanto, até certo ponto, à dramaturgia de cena que lhe foi sobreposta.

Todavia, levando em consideração o prisma do(a) espectador(a) que não possui (e nem é obrigado a possuir) tais referências teóricas, se poderia aventar a possibilidade de uma apreensão consideravelmente diferente. Isso porque, nesse caso, a tendência é que ele(a) assimile a obra tal como ela se apresenta em cena, isto é, em sua plena autonomia cênica. Um olhar, enfim, destituído de anteparos apriorísticos interpostos na relação do sujeito com o objeto. Quando isso sucede, supõe-se, o final propugnado deixaria de ser “alternativo” para ser, simplesmente, o final, no qual a questão do embate cultural e racial é trazida à tona como a última e, por isso mesmo, definitiva “palavra” do espetáculo.

*Fotos de João Milet Meirelles

Doutor e pós-doutorando em Artes Cênicas pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), com pesquisas desenvolvidas nas áreas de crítica teatral e história do teatro brasileiro. É jornalista, historiador, crítico teatral e professor da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (ETUFBA), integrando o Departamento de Fundamentos do Teatro.

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