Macunaíma: um marco na história do teatro brasileiro

por Rodrigo Morais Leite

 

Macunaíma, a versão cênica do romance homônimo realizada por Antunes Filho e o então denominado Grupo Pau-Brasil, estreou no Teatro São Pedro, em São Paulo, no dia 15 de setembro de 1978. Nascia ali, de acordo com inúmeros críticos e historiadores, uma das principais obras-primas do teatro nacional, que ao longo dos anos ganharia significação comparável às montagens de Vestido de Noiva (1943) e O Rei da Vela (1967), marcos do nosso modernismo teatral. Além disso, é bem provável que Macunaíma tenha sido a montagem brasileira que mais sucesso obteve no exterior, excursionando, de 1979 a 1987, por vinte países. Embora outras encenações nacionais tenham, anteriormente, excursionado com êxito pelo estrangeiro, como o provam as montagens de Gimba (1959) e Morte e Vida Severina (1965), nenhuma outra conquistara um reconhecimento tão prolongado e em localidades tão diversas.

 

Cena de Macunaíma. Foto: Emidio Luisi

Mas, afinal, por que motivos essa adaptação da conhecida obra de Mário de Andrade possuiria um papel tão relevante na história do teatro brasileiro? Segundo uma gama variada de comentaristas, porque com ela ter-se-ia iniciado no Brasil o reinado dos encenadores-criadores (a expressão, informe-se, é de Sábato Magaldi). Ou seja, em virtude do impacto causado por Macunaíma, espetáculo configurado a partir da cena e não, como se poderia imaginar, de um texto pré-concebido extraído do romance, a arte da encenação teria adquirido uma autonomia jamais vista nos palcos nacionais, conferindo ao encenador o status de senhor absoluto da criação teatral. Essa hipertrofia da cena, conclui-se facilmente, só poderia se efetivar em detrimento da dramaturgia e, por extensão, da figura do dramaturgo, relegada doravante a um segundo ou terceiro plano em termos autorais.

 

Antunes Filho no Teatro Anchieta. São Paulo, 2006. Foto: Lenise Pinheiro

 

Por mais que já se contabilizassem aqui experiências radicais no âmbito da encenação, levadas a cabo por nomes como Paulo Afonso Grisolli, Antônio Abujamra, José Celso Martinez Corrêa e Victor Garcia, Macunaíma, ao elevar tal arte ao paroxismo, seria uma obra precursora de toda uma linhagem do teatro brasileiro surgida na década de 1980, marcada pela emergência de encenadores-criadores como Ulysses Cruz, Moacyr Góes, Cacá Rosset, Gabriel Villela, Bia Lessa e Gerald Thomas. De acordo com semelhante ponto de vista, essa autonomização da cena representaria, no Brasil, a passagem do teatro moderno para o contemporâneo. Nas palavras de Sílvia Fernandes, em seu trabalho sobre a encenação brasileira das últimas décadas, “as experiências do diretor [Antunes Filho] são o prenúncio de uma tendência de hegemonia de encenadores nos palcos nacionais, que dialoga com criações europeias e norte-americanas no que se refere à autonomia da escritura cênica em relação ao texto dramático, e em geral se associa às correntes ligadas ao pós-modernismo teatral”.

 

Cena de Macunaíma em apresentação acontecida no Teatro Presidente, de Porto Alegre, em 1979. Foto: autoria desconhecida

 

Para a realização dessa obra limítrofe do teatro brasileiro, Antunes Filho se valeu de uma série de estratagemas, alguns de cunho eminentemente estético, outros mais relacionados à sua viabilização econômica e à organização do grupo responsável por corporificá-la em cena. No tocante ao primeiro aspecto, um dos “trunfos” de Macunaíma estaria no fato de seu animador ter levado às últimas consequências certos processos laboratoriais ensejados em trabalhos anteriores, notadamente em Vereda da Salvação (1964), A Falecida (1965) e Peer Gynt (1971). Com uma diferença, contudo, fundamental: se, nos casos acima, as improvisações sugeridas pelo elenco tinham como ponto de partida um texto teatral acabado, em Macunaíma a base de apoio, amparada num romance rapsódico, mostrava-se muito mais permeável ao desenvolvimento da criatividade atoral. Com efeito, o espetáculo em debate foi praticamente todo concebido por meio de improvisações cênicas, cabendo ao encenador, dentro desse esquema, servir como um provocador e, ao mesmo tempo, como um depurador da cena.

Mesmo não prescindido do trabalho de um dramaturgo, exercido em Macunaíma por Jacques Thiériot, sua participação no projeto não se fez presente de modo apriorístico, criando em um primeiro momento uma peça adaptada do romance para que ela fosse, na sequência, levada à cena. Como informa Sebastião Milaré no livro Hierofania: O Teatro Segundo Antunes Filho (2010), antes de Thiériot entrar para a equipe de criação do espetáculo já se trabalhava sobre um rascunho construído a partir das improvisações. A contribuição do então diretor da Aliança Francesa de São Paulo teria consistido, com efeito, em “dar forma dramatúrgica àquela massa de informações, onde as aventuras do herói se perdiam em tumultos criativos”. O roteiro estipulado por Thiériot, estudioso que depois se tornaria o tradutor de Macunaíma para o francês, dividia-se em duas partes principais chamadas épocas, subdivididas em quatro atos e quinze cenas. Fiel, na medida do possível, à estrutura do original andradino, cada cena se conformava, aproximadamente, a um dos capítulos do romance, sendo a última correspondente ao capítulo dezessete e ao epílogo.

 

Da esquerda para a direita: Cissa Carvalho Pinto, Flávia Pucci, Giulia Gam, Cecília Homem de Mello, Lígia Cortez, Marlene Fortuna, Salma Buzzar. Foto: Emidio Luisi

 

Saindo do âmbito estético para o econômico, mais diretamente ligados à produção do espetáculo, informe-se que Macunaíma surgiu a partir de um curso de formação de atores proposto por Antunes Filho, em 1977, junto à Comissão Estadual de Teatro, órgão da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Com o romance servindo de guia para os exercícios, ao final do curso haveria a possibilidade de uma montagem teatral da obra. Uma vez concedida a verba da CET para a sua realização, o equivalente a 500 mil cruzeiros da época, Antunes Filho pôs a mão na massa e trabalhou, durante três meses, com cerca de quarenta aprendizes selecionados em testes, a maioria dos quais iniciantes no teatro. Com o término do curso, além do aporte de mais alguns recursos provindos da CET, apresentou-se o plano de montagem, cuja materialização consumiria aproximadamente um ano de trabalho, com ensaios que muitas vezes iam das oito da manhã à meia-noite.

Devido, em boa parte, ao rigor disciplinar instituído por Antunes Filho nesse processo, do início do curso à estreia da montagem muitos aprendizes saíram e outros foram admitidos à equipe, que nesse ínterim se transformou no Grupo Pau-Brasil. Posteriormente, graças ao sucesso do espetáculo de estreia, ele seria rebatizado para Grupo Macunaíma, nome pelo qual é hoje conhecido. Como muitos desses atores e atrizes que entraram no decorrer do processo eram iniciantes, para suprir a precariedade da formação recorreu-se à continuação do curso de teatro, que no fim das contas acabaria se tornando o embrião do atual CPT (Centro de Pesquisa Teatral), entidade criada em 1982 quando o Grupo Macunaíma, ao se associar ao Sesc-SP, institucionalizou-se. 

 

Cena de Macunaíma. Foto: Emidio Luisi

 

A respeito da seleção do elenco que deveria compor o espetáculo, registre-se que, das quarenta pessoas responsáveis, em alguma medida, pela adaptação, apenas vinte foram enfim integradas à montagem, o que teria gerado, novamente de acordo com Sebastião Milaré, uma dolorosa separação dentro da equipe de criação da obra. Outro fato curioso relaciona-se à escolha do ator que deveria desempenhar o papel do protagonista, prerrogativa que afinal recaiu sobre os ombros de Cacá Carvalho. Este, talvez poucos o saibam, não participara do curso inicial que dera ensejo à montagem e nem se inscrevera para os processos seletivos posteriores. Natural de Belém do Pará, o teatro só entrou na vida desse hoje conhecido ator quando, de passagem por São Paulo, ele resolveu acompanhar uma amiga interessada em participar da seleção. Ao emitir opinião sobre uma cena criada por um dos concorrentes, Antunes Filho desafiou-o a fazer o teste, fato que o levaria a desistir de retornar à terra natal em prol da realização da montagem.

Para além dos laboriosos laboratórios, foram empreendidos na confecção de Macunaíma substanciosas pesquisas sobre o modernismo brasileiro, em especial sobre o “período antropofágico”, lembrando que tanto o romance de Mário quanto o Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade saíram no mesmo ano (1928). Dentre o cabedal de obras teóricas que serviram de subsídio para a imersão do grupo, duas se destacam em grau de importância: Roteiro de Macunaíma (1955), de M. Cavalcanti Proença, e O Selvagem (1876), do general Couto de Magalhães. A primeira consiste em um estudo aprofundado do romance, que investiga suas expressões idiomáticas, a sintaxe e as lendas contidas na narrativa, procurando rastrear as fontes utilizadas pelo autor em sua composição. A segunda poderia ser qualificada como uma pesquisa antropológica sobre a origem das nações indígenas brasileiras, que contempla, em seu escopo, a compilação de vinte e duas lendas provindas dessas nações. Trata-se, é claro, de uma referência à qual o próprio Mário de Andrade teria recorrido para a escrita de sua obra-prima.

 

Macunaíma (ao centro, interpretado por Cacá Carvalho) junto aos seus irmãos Maanape e Jiguê. Foto: autoria desconhecida

 

Transbordante de criatividade coletiva, às vésperas da estreia Macunaíma apresentava duração de aproximadamente sete horas. Com a realização de alguns cortes, estreou com quatro horas e meia, sendo posteriormente reduzido a “apenas” três. Segundo David George, “brasilianista” que se debruçou sobre a obra de Antunes Filho e o Grupo Macunaíma, muito contribuíram para a riqueza do espetáculo sua direção de arte, sob os cuidados de Naum Alves de Souza, e sua direção musical, função assumida por Murilo Alvarenga. No que concerne a esta, informe-se que Macunaíma era percorrido por um fio de cantos indígenas acompanhados de flauta, que no espetáculo adquiririam aspectos “celebratórios e plangentes”. Já a herança musical negra comparecia por meio de algumas cenas inspiradas, por exemplo, nos rituais da macumba, que serviriam para reforçar os laços do herói com nossas matrizes culturais africanas. A esse respeito, recorde-se que, no nascimento de Macunaíma, narrado bem no início do romance, um de seus irmãos (Maanape) diz: “o Rei Nagô avisou que este menino vai ser muito inteligente”.

  

Foto: Emidio Luisi

Em relação à direção de arte, impossível deixar de mencionar a maneira como o espetáculo incorporou o uso de certos acessórios, fosse para a composição do figurino, fosse para a concepção de cenários móveis. O grau de significação atingido em tais searas poderia ser aquilatado, talvez, pelo emprego conferido por Naum Alves de Souza a um objeto tão banal como, por exemplo, o papel-jornal. Além de configurarem partes do figurino, servindo de matéria-prima a algumas vestes e máscaras trajadas pelos atores, folhas de jornal ora podiam simbolizar comida apanhada na floresta, bastando para isso amarrotá-las, ora eram queimadas em cena para representarem uma fogueira acesa no meio dessa mesma floresta. Por “detrás” de tudo isso se encontraria, ainda seguindo os passos David George, uma estratégia tipicamente antropofágica, na qual a redução de um objeto do mundo letrado a matéria-prima do mundo pré-letrado de Macunaíma patenteia a devoração do moderno pelo arcaico. Nas palavras do estudioso, “em consonância com a visão da Revolução Caraíba de Oswald de Andrade, a lógica e a objetividade são canibalizadas pelo pré-lógico”.

 

The Life and Times of Joseph Stalin, de Robert Wilson. BAM Opera House, Nova York, 1973. No Brasil, em virtude da censura imposta pela ditadura civil-militar, a obra, para ser liberada, teve o título alterado para A Vida e a Época de Dave Clark. Foto: Jennifer Merin

 

 Outro ponto que, ao seu modo, também se liga à problemática antropofágica relaciona-se às influências exercidas sobre Antunes Filho na conformação cênica de Macunaíma, notadamente a de Robert Wilson. Por ocasião do 1º Festival Internacional de Teatro, promovido pela atriz-empresária Ruth Escobar em 1974, o encenador norte-americano apresentou em São Paulo o espetáculo A Vida e a Época de Dave Clark, obra que causou grande deslumbramento em Antunes Filho devido, provavelmente, às inovadoras concepções sobre o tempo teatral ali antevistas. A esse respeito, acrescente-se apenas que a encenação de A Vida e a Época de Dave Clark, levada no Teatro Municipal de São Paulo, se estendia por mais ou menos doze horas. Ao estrear Macunaíma, quatro anos após a primeira passagem de Bob Wilson pelo Brasil, alguns críticos, segundo Sebastião Milaré, logo apontaram a influência da famosa “câmara lenta” wilsoniana no espetáculo de Antunes Filho, caracterizada, em termos sumários, pela movimentação excessivamente desacelerada dos atores ao percorrerem o palco.

 

Ruth Escobar e Bob Wilson durante o I Festival Internacional de Teatro. São Paulo, 1974. Foto: autoria desconhecida

 

Mesmo sem negar a referida influência, Milaré ressalva que ela teria sido assimilada pelo encenador paulista de maneira bastante original, na medida em que a “câmera lenta” observada em Macunaíma deveria se contrapor ao frenesi coletivo da ação, de modo a se tornar um recurso narrativo e não, como em Bob Wilson, a própria “narração”. A estética wilsoniana seria, com efeito, apenas (mais) uma das muitas referências “deglutidas” por Antunes Filho na realização do espetáculo em debate.

 

Ítala Nandi no papel de Heloísa de Lesbos em O Rei da Vela (1967). Foto: Freedi Kleemann

 

Finalmente, se a montagem de Macunaíma representa, conforme defende David George, uma extensão dos esforços pioneiros do Teatro Oficina em O Rei da Vela, no sentido de estabelecer um teatro nacional mediante o uso antropofágico do folclore e dos motivos primitivos, vale a pena atentar para o que afirma o crítico teatral e historiador Décio de Almeida Prado em “A Antropofagia Revisitada”, texto que serve de prefácio a um dos estudos de George sobre esse assunto. Ao fazer uma reflexão sobre a erupção temporã da antropofagia nos palcos nacionais, verificadas, em tese, somente nas décadas de sessenta e setenta do século passado, o eminente intelectual paulista emite o seguinte comentário, aqui transcrito à guisa de conclusão:

“Creio ter deixado bem clara a minha surpresa perante o ressurgimento da década de [19]20, que eu enterrara descuidadamente em minha adolescência, como se o modernismo, tomando novo fôlego, recomeçasse da capo, tentando recuperar o radicalismo estético de seu primeiro impulso. Surpresa maior, contudo, seria certamente a de Mário e Oswald, irmanados na morte como nunca o foram em vida. Se admitirmos, antropofagicamente, que os dois subiram aos céus (da literatura, bem entendido) e se transformaram em estrelas, como Macunaíma, herói de nossa gente, haveremos de convir que eles não devem estar pouco admirados de que raios emitidos há tanto tempo e por período tão breve (a Antropofagia não chegou a durar três anos, não resistindo ao impacto conjunto da crise econômica e da troca de casais) continuem a iluminar o caminho para o teatro mais avançado que se faz hoje no Brasil.”

 

Mário de Andrade em 1935/36 (fotografado por Benedito Junqueira) e Oswald de Andrade em 1954 (autoria desconhecida).

 

Para saber mais:

 

FERNANDES, Sílvia. “A Encenação”. In: História do Teatro Brasileiro, Volume 2: Do Modernismo às Tendências Contemporâneas. São Paulo: Perspectiva: Edições Sesc, 2013.

GEORGE, David. Teatro e Antropofagia. São Paulo: Global, 1985.

______. Grupo Macunaíma: Carnavalização e Mito. São Paulo: Perspectiva, 1990.

LUISI, Emidio; MILARÉ, Sebastião. Antunes Filho: Poeta da Cena. São Paulo, Edições Sesc, 2010.

MAGALDI, Sábato. “Síntese Histórica”. In: Depois do Espetáculo. São Paulo: Perspectiva, 2003.

MILARÉ, Sebastião. Antunes Filho e a Dimensão Utópica. São Paulo: Perspectiva, 1994.

______. Hierofania: O Teatro Segundo Antunes Filho. São Paulo: Edições Sesc, 2010.

PRADO, Décio de Almeida. “A Antropofagia Revisitada”. In: Peças, Pessoas, Personagens: O Teatro Brasileiro de Procópio Ferreira a Cacilda Becker. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

 

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