Pílulas de literatura: Kundera, a luz e a escuridão

por Homero Nunes

A Insustentável Leveza do Ser


“Para Sabina, viver significa ver. A visão é limitada por uma dupla fronteira: a luz intensa que cega e a escuridão total. Talvez daí lhe venha a repugnância por todos os extremismos. Os extremos delimitam a fronteira para além da qual não há vida, e a paixão pelo extremismo, tanto em arte como em política, é um desejo de morte disfarçado. Para Franz, a palavra ‘luz’ não evoca a imagem de uma paisagem suavemente iluminada pelo sol, mas sim a fonte da própria luz: o sol, uma lâmpada, um projetor. Vêm-lhe à cabeça as metáforas habituais: o sol da verdade, o brilho ofuscante da razão, etc. É atraído pela luz como também o é pela escuridão. Nos dias que correm, apagar a luz para fazer amor é tido como ridículo; ele sabe disso, e deixa uma luzinha acesa em cima da cama. No entanto, no momento em que penetra Sabina, fecha os olhos. A volúpia que o invade exige escuridão. Uma escuridão pura, absoluta, sem imagens nem visões, uma escuridão sem fim, sem fronteiras, uma escuridão que é o infinito que cada um de nós traz em si (sim, se alguém procura o infinito, há de fechar os olhos). No momento em que sente a volúpia espalhar-se pelo corpo, Franz se dissolve no infinito de sua escuridão, tornando-se ele próprio infinito. Mas quanto mais o homem cresce na sua escuridão interior, mais diminuído fica na sua aparência física. Um homem de olhos fechados não é senão um destroço de si mesmo. Como não quer assistir a isso, Sabina também fecha os olhos. Para ela, a escuridão não significa o infinito, mas apenas a separação daquilo que vê, a negação do que é visto. Recusa-se a ver.”


Milan Kundera. A Insustentável Leveza do Ser. Pág. 100.

Imagens:
1) Sabina no espelho (Lena Olin)
2) Tomas (Daniel Day-Lewis), Tereza (Juliette Binoche) e Karenin, o cão doente
no filme “The Unbearable Lightness of Being”, de Philip Kaufman, 1988

Veja o filme, mas antes leia o livro:


 Nesnesitelná lehkost bytí, 1984


 The Unbearable Lightness of Being, 1988


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