Machado de Assis: a mais genial pergunta da literatura brasileira

por Viviane Loyola

Outro dia, no tédio do domingo, propus uma brincadeira a um amigo. Faça uma pergunta. Não importa qual e vou te responder sem firulas. A pergunta pegadinha –  Capitu traiu ou não Bentinho?

Dúvida. Edvard Munch. 1895.

Minha cara travada. Aquela gagueira habitual de quem não sabe bem a resposta. Da primeira vez achei sim. Na segunda leitura jurava que não. Na terceira vez, foram várias vezes tentando entender Capitu e “seus olhos de ressaca”, comecei a desconfiar que não importava muito a resposta. Nem tinha resposta certa ou errada. Genial mesmo era a pergunta.

Foi Machado de Assis quem me explicou o que é ciúme.Tento não ser ciumenta porque li Dom Casmurro e entendi logo o que o ciúme pode fazer a alguém. Não quero a angústia de Bentinho, a insegurança e a posse que sentia por Capitu. Poucas vezes vi um personagem tão angustiado. Uma angústia que, pela genialidade do escritor, a gente sentia junto.

Ciúme. Edvard Munch. 1907.

Na verdade fui iniciada por Machado de Assis. Minha primeira vez com um adulto. Antes tinha lido livros infantis, mas não tinha conseguido chegar ao fim com José de Alencar. Com todo respeito, pré-adolescentes não deveriam ler José de Alencar. Talvez não devessem ler nem Machado de Assis. Falta maturidade. Mas para mim funcionou de um jeito maluco. Tinha uns 12 ou 13. Gostei de Capitu. Tão diferente das heroínas precisando ser salvas por um homem montado a cavalo. Ambígua, ardilosa, sedutora, controversa, independente, avançada. Uma protagonista. Uma das principais da literatura brasileira. A vértice do triângulo que nem sei existiu de fato. Ou talvez tenha existido na imaginação e isso basta.

Madonna. Edvard Munch. 1894-95.

Publicado pela primeira vez em 1899, Dom Casmurro está próximo a completar 120 anos. É um velhinho que insiste em não morrer, é um olhar atemporal sobre a sociedade brasileira e suas deformidades. Machado de Assis desfila a ironia, o pessimismo e a crítica que o caracteriza em suas obras. É uma ode sobre o ciúme, um romance para “lavar a língua”.

Certa vez vi o escritor Autran Dourado dando essa definição sobre Dom Casmurro e achei perfeita: “Todo mundo deveria ler Dom Casmurro uma vez por ano para lavar a língua”. Significa que se quer passar tudo a limpo, se tem dúvida sobre como escrever uma palavra, como pontuar uma frase ou conectar uma ideia, o diálogo bem escrito, se pretende ler e escrever melhor em português, banhe-se de Machado de Assis. Não interessa se um termo ou outro pareça arcaico. Importa o texto. Um escritor é o seu texto. Machado é uma biblioteca inteira. Não tem a gíria do momento, mas tem o domínio de como se expressar e se fazer entender em qualquer parte.

Melancolia. Edvard Munch. 1893.

Bento Santiago, o nosso Bentinho, conta ao leitor como um dia recebeu a alcunha de Dom Casmurro. Foi quando cochilou durante a leitura de versos em um trem. O poeta contrariado lhe deu esse apelido. O narrador relembra sua história, somos apresentados à convivência de Bentinho com a família. O tempo todo, desde a infância à fase adulta, é o ponto de vista do narrador que prevalece, o que semeia a dúvida sobre os fatos. Eles aconteceram mesmo dessa forma ou foi o olhar de Bentinho que os definiu?

Na sua passagem por um seminário, Bentinho conhece Ezequiel Escobar, que logo se torna seu melhor amigo. O romance é também um ensaio sobre a amizade masculina.   Bentinho e Capitu se casam. Escobar casa-se com Sancha, uma antiga amiga de escola de Capitu. Os casais passam a conviver intensamente. É também um romance sobre a redoma do casamento.

Capitu e Bentinho parecem um casal feliz, mas a relação é ameaçada pela demora em ter um filho. Escobar e Sancha têm uma filha, a quem colocam o nome de Capitolina. Depois de algum tempo, Capitu tem um filho e para retribuir a homenagem dão o nome de Ezequiel ao menino. Bentinho vê muita semelhança entre o pequeno Ezequiel e seu amigo Escobar e se amargura. A partir daí talvez não importe tanto os fatos porque a história é sobre o sentimento, sobre a dúvida de uma paternidade, a humilhação de uma infidelidade, o medo da perda, a baixa autoestima de Bentinho. É também um romance sobre a construção da autoestima.

Separação. Edvard Munch. 1896.

O livro é tudo isso. É sobre uma mulher. Sobre uma mulher e um homem. Sobre dois homens e uma mulher. Um triângulo. Sobre amar alguém e sentir ciúme. Ou se o amor é isso mesmo, se o ciúme é de fato uma variante do amor. Sobre o medo masculino e a beleza de um mulher. A história é simples, comum e possível. São os anseios de uma gente, é o cotidiano de uma cidade brasileira àquela época.

Dom Casmurro é sobre saber escrever. É uma saudade de ler. Dom Casmurro é uma vontade que tenho de falar para que o conheçam porque muita gente jovem ainda não o leu. Nem querem porque o escritor está morto, o livro tem mais de cem anos. Esse imediatismo faz com não percebamos como o tempo é relativo. Às vezes o tempo passa e a pergunta fica. A obra permanece e estou eu aqui a falar dela junto a tantos outros que já o fizeram um dia. Um clássico respira porque nunca silencia sua pergunta: Capitu traiu ou não Bentinho?

Marco Jacobsen, 2009.

Por Viviane Loyola

Dom Casmurro está em domínio público, para baixar, aqui:

http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua000194.pdf

Ps.:

As pinturas que ilustram este post são de Edvard Munch (1863-1944), pintor norueguês contemporâneo a Machado de Assis (1839-1908), 24 anos mais moço. Ainda que muito distantes em contexto e arte, Munch também retratou as questões humanas como o ciúme, a dúvida, a ansiedade, a angústia… o grito. Casmurro. 

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