Pílulas de literatura: Eça, Ega e as Memórias de um Átomo

por Homero Nunes

Memórias de um Átomo
João da Ega

“Devia ser uma epopeia em prosa, como ele dizia, dando, sob episódios simbólicos, a história das grandes fases do Universo e da Humanidade. Intitulava-se Memórias de Um Átomo, e tinha a forma duma autobiografia. Este átomo (o átomo do Ega, como se lhe chamava a sério em Coimbra) aparecia no primeiro capítulo, rolando ainda no vago das Nebulosas primitivas: depois vinha embrulhado, faísca candente, na massa de fogo que devia ser mais tarde a Terra: enfim, fazia parte da primeira folha de planta que surgiu da crosta ainda mole do globo. Desde então, viajando nas incessantes transformações da substância, o átomo do Ega entrava na rude estrutura do Orango, pai da Humanidade – e mais tarde vivia nos lábios de Platão. Negrejava no burel dos santos, refulgia na espada dos heróis, palpitava no coração dos poetas. Gota de água nos lagos de Galileia, ouvira o falar de Jesus, aos fins da tarde, quando os apóstolos recolhiam as redes; nó de madeira na tribuna da Convenção, sentira o frio da mão de Robespierre. Errara nos vastos anéis de Saturno; e as madrugadas da terra tinham-no orvalhado, pétala resplandecente de um dormente e lânguido lírio. Fora omnipresente, era omnisciente. Achando-se finalmente no bico da pena do Ega, e cansado desta jornada através do Ser, repousava – escrevendo as suas Memórias…”

Eça de Queiroz. Os Maias. Cap. IV.
João da Ega, o Mefistófeles de Celorico

“João da Ega, com efeito, era considerado não só em Celorico, mas também na Academia que ele espantava pela audácia e pelos ditos, como o maior ateu, o maior demagogo, que jamais aparecera nas sociedades humanas. Isto lisonjeava-o. Por sistema, exagerou o seu ódio à divindade, e a toda a ordem social: queria o massacre das classes médias, o amor livre das ficções do matrimónio, a repartição das terras, o culto de Satanás. O esforço da inteligência neste sentido terminou por lhe influenciar as maneiras e a fisionomia; e, com a sua figura esgrouviada e seca, os pêlos do bigode arrebitados sob o nariz adunco, um quadrado de vidro entalado no olho direito – tinha realmente alguma coisa de rebelde e de satânico. Desde a sua entrada na Universidade renovara as tradições da antiga boémia: trazia os rasgões da batina cozidos a linha branca; embebedava-se com carrascão; á noite, na Ponte, com o braço erguido, atirava injurias a Deus.”

Eça de Queiroz. Os Maias. Cap. IV.


“Carlos da Maia parecia aniquilado:
– Tudo isso é nojento! No fim talvez até se entendam ambos. Estou como tu dizias aqui há tempos: Caiu-me a alma a uma latrina, preciso um banho por dentro!
João da Ega murmurou melancolicamente:
– Essa necessidade de banhos morais está se tornando, com efeito, tão freqüente… Devia haver na cidade um estabelecimento para eles.”
Eça de Queiroz. Os Maias. Cap. XIV.
 Caricatura de Eça de Queiroz, por Rafael Bordello Pinheiro, 1880.
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