Pílulas de literatura: Henry Miller e o Bóris com a barba suja de ovo

por Isso Compensa
O “Trópico de Câncer”, de Henry Miller, é um texto complexo, com fluxos de consciência, trechos filosóficos e outros escatológicos. Cru e poético ao mesmo tempo. Erótico, pornográfico até, mas vai muito além disso. É sobre a vida louca e fracassada daqueles escritores americanos na Paris dos anos 20. Sinta a atmosfera do livro nos trechos abaixo:
 
“Hora do crepúsculo. Azul indiano, água de vidro, árvores reluzentes e liquescentes. Os trilhos desaparecem no canal em Jaurés. A comprida lagarta com os lados esmaltados mergulha qual montanha-russa. Não é Paris. Não é Coney Island. É uma mistura crepuscular de todas as cidades da Europa e América Central. Os pátios ferroviários embaixo de mim, os trilhos pretos e trançados, não ordenados pelo engenheiro, mas de desenho cataclísmico, como aquelas sombrias fendas no gelo polar que a câmara registra em tons de preto.

Comida é uma das coisas de que gosto tremendamente. E nesta bela Villa Borghese raramente há indícios de comida. É positivamente pavoroso às vezes. Repetidamente pedi a Bóris que encomendasse pão para o desjejum, mas ele sempre se esquece. Parece que faz seu desjejum fora. E quando volta está palitando os dentes e há um pouco de ovo pendurado em seu cavanhaque. Come no restaurante por consideração a mim. Diz que lhe dói comer uma grande refeição enquanto olho.”
 
Henry Miller. Trópico de Câncer. Na terceira página.
 
 Foto por Brassai, Henry Miller à L’Hôtel des Terasses, Paris, 1932.

Abaixo, um trecho picante do Trópico de Câncer:

“Daquela Paris de 28 somente uma noite permanece em minha memória – a noite anterior à partida para a América. Uma noite rara, Borowski ligeiramente embriagado e um pouco desgostoso comigo por eu dançar com toda sirigaita que encontrava. Mas nós vamos partir amanhã cedo! É isso que digo a toda vulva que consigo agarrar – partir amanhã cedo! É isso que estou dizendo à loura de olhos cor de ágata. E, enquanto digo isso, ela toma minha mão e enfia-a entre suas pernas. No lavatório, fico em pé diante da pia com uma ereção terrível; parece leve e pesado ao mesmo tempo, como um pedaço de chumbo com asas. E enquanto estou ali em pé, entram duas bocetas – americanas. 

Cumprimento-as cordialmente, de membro na mão. Dão-me uma piscadela e passam. No vestíbulo, enquanto abotôo a braguilha, reparo em que uma delas está esperando a amiga sair da privada. A música ainda está tocando e talvez Mona venha buscar-me, ou Borowski com sua bengala de cabo de ouro, mas agora estou nos braços dela, ela me agarra e não me importa quem venha ou o que aconteça. Entramos contorcendo-nos na privada e lá eu a ergo, encosto-a à parede e tento penetrá-la, mas não dá certo. Por isso, sentamo-nos na bacia e tentamos desse jeito, mas também não dá certo. De todo jeito que tentamos, não dá certo. E todo o tempo ela segura meu membro, agarra-se a ele como a um salva-vidas, mas não adianta, estamos muito excitados, muito ansiosos. A música ainda está tocando e saímos dançando da privada para o vestíbulo. Enquanto estamos dançando ali no lavatório, eu descarrego tudo sobre seu belo vestido e ela fica louca de raiva. Volto cambaleando para a mesa e lá estão Borowski com seu rosto corado e Mona com seu olhar desaprovador. E Borowski diz: – Vamos todos a Bruxelas amanhã.”

A imagem de capa é de Egon Schiele: “Mulher Nua Deitada”, 1917.


Compensa o livro fotográfico “Henry Miller: The Paris Years”, com a seleção de fotos tiradas por Brassai nos anos 30.
 

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