Vamos morrer. E aí?

por Matheus Arcaro

A definição de Aristóteles é clássica: o homem é um animal racional. Logo, é o único animal que tem consciência de estar vivo e, forçosamente, o único que tem consciência da própria morte. Para muitos, esse fardo é pesado demais.

Natureza morta com caveira, tulipa e ampulheta
Philippe de Campaigne, 1671

A maioria sequer toca no assunto: “falar de coisa ruim, atrai coisa ruim”. No entanto, os noticiários que muitas destas pessoas assistem estão inundados de morte. O tema é recorrentemente tratado, mas não é refletido. Martin Heidegger (1888-1976) faz uma análise profunda e chega à conclusão de que a morte é vislumbrada apenas em seu sentido trivial. Temos medo de morrer e tomamos algumas precauções para retardar a morte. Mas eis que emerge o paradoxo: temos a certeza da morte e, no entanto, enxergando-a cotidianamente, vivemos como imortais: trabalhamos feito loucos, corremos para lá e para cá, queremos resolver inúmeros problemas, mas não nos atentamos para nós mesmos. Segundo o pensador alemão, a única possibilidade de fugirmos dessa superficialidade é através do sentimento de angústia diante da morte. A angústia é algo que altera tão radicalmente o homem que o transforma em existente (diferente de uma pedra, por exemplo). É nessa indeterminação absoluta que o homem se singulariza. É por meio da angústia que nos vemos como seres-para-a-morte e, assim, podemos nos assumir como seres finitos. Com isso, é possível transcender da vida mecanizada para a existência autêntica, genuína.

Vanitas, Jacques de Gheyn II, 1603

Suponhamos, por força de exercício, que, a partir de agora, não haja mais morte. Como se daria isso? Não envelheceríamos? Chegaríamos a um estágio de crescimento e pararíamos? Para que faríamos algo agora se pudéssemos fazer daqui a oitocentos mil anos? Conceber a vida sem a morte é tão infantil quanto pensar no dia sem a noite (aliás, a calamidade que seria a “ausência” da morte é explorada com maestria pelo escritor José Saramago em “As intermitências da morte”). Odiar a morte não vai exterminá-la ou adiá-la. Então, seria plausível tomarmos como guia a noção nietzschiana de “amor fati”: amemos a morte, tanto a nossa, quanto a das pessoas que estimamos. Só assim, amando o que é inexorável, podemos desfrutar do “enquanto isso” que é a vida.

Vanitas, Bartholomäus Bruyn, primeira metade do século XVI

Outro exercício hipotético: cogitemos por um instante que Deus não exista. Sem a recompensa da vida eterna, o homem teria motivo para agir bem? A maioria pensa como um dos Irmãos Karamazov de Dostoievski: “Se não há Deus, tudo é permitido”. Daí muitos pensadores reconhecerem a necessidade de entidades metafísicas, mesmo admitindo que estas sejam criações humanas, úteis apenas à manutenção da ordem moral. Para Immanuel Kant (1724 – 1804), ao contrário, não há necessidade de divindades para o bem agir. A razão seria o único instrumento necessário para isso. Aliás, sequer haveria possibilidade de afirmações ontológicas sobre algo fora do binômio tempo-espaço, como Deus e alma.

Vanitas, Aelbert Jansz van der Schoor, entre 1640 e 1672

Diante desse debate levanta-se a questão: mas se o fim é certo, temos mais é que aproveitar a vida. Certo, mas o que significa isso? Para parte do senso comum, aproveitar a vida gira em torno dos excessos carnais. Óbvio que os prazeres pontuais têm sua importância. O problema é quando a vida se resume a isso. Voltando à primeira frase: o homem é um animal racional. Mas não só. De acordo com Espinosa, somos seres de afeto. Somando nossa capacidade afetiva com nossa racionalidade, somos os únicos animais capazes de amar raciocinando ou raciocinar amando. Então, desfrutemos da nossa potência de agir, como diria Espinosa, da nossa capacidade de refletir, de sentir e de criar.

Vanitas, Pieter Potter, 1655

Matheus Arcaro é mestrando em filosofia contemporânea pela UNICAMP. Pós-graduado em História da Arte. Graduado em Filosofia e também em Comunicação Social. É professor, artista plástico, palestrante e escritor, autor dos livros de contos  “Violeta velha e outras flores” (Patuá, 2014) e “Amortalha”   (Patuá, 2017) e do romance “O lado imóvel do tempo” (Patuá, 2016).

 

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