Sigmund Freud entrevistado por George Sylvester Viereck, Áustria, 1930.
Entrevista publicada originalmente em Glimpses of the Great, uma coletânea de entrevistas do jornalista, em 1930.
Abaixo a tradução em português publicada no livro A Arte da Entrevista, de Fabio Altman¹, ipsis litteris:
“
“Setenta anos de idade me ensinaram a aceitar a vida com alegre humildade.” Quem fazia essa declaração era o professor Sigmund Freud, o grande explorador austríaco do lado oculto da alma. Assim como o trágico herói grego Édipo, cujo nome está tão intimamente ligado aos princípios fundamentais da psicanálise, Freud confrontou a Esfinge sem receio.
Como Édipo, ele decifrou o enigma. Pelo menos, nenhum mortal chegou tão perto dos segredos do comportamento humano quanto Freud.
Freud é para a psicologia o que Galileu foi para a astronomia. É o Cristóvão Colombo do inconsciente. Ele abre novas perspectivas, sonda novas profundezas. Freud alterou todas as relações na vida, decifrando o sentido oculto das regras do inconsciente. Conversamos na casa de veraneio de Freud em Semmering, uma montanha nos Alpes Austríacos, onde os vienenses elegantes adoram se reunir.
A última vez que vira o pai da psicanálise, ele estava em sua casa simples na capital austríaca. Os poucos anos que separavam a minha última visita desta de agora multiplicaram as rugas na sua testa e aumentaram a sua palidez acadêmica. Seu rosto estava abatido, sofrido. A mente estava ativa, o espírito firme, a cortesia impecável como sempre, mas uma leve problema de fala me preocupou.
Parece que uma doença maligna no maxilar superior necessitara de uma operação. Desde então, Freud usa um aparelho mecânico para facilitar a fala. Na verdade, não há diferença entre o uso desse aparelho ou de óculos. Ele deixa Freud mais constrangido do que os visitantes. Depois que conversamos com ele por algum tempo, o aparelho se torna quase imperceptível. Nos dias em que Freud está bem, nem se percebe a presença dele. Mas para Freud, ele é causa de constante irritação.
“Eu detesto o meu maxilar mecânico porque a luta com o mecanismo consome uma força preciosa. Mas é melhor ter um maxilar mecânico do que nenhum. Ainda prefiro viver a morrer. Talvez os deuses sejam generosos conosco, tornando a vida mais desagradável à medida em que envelhecemos. No final, a morte parece mais tolerável do que os muitos problemas que temos que enfrentar.”
Freud se recusa a admitir que o destino tenha sido rancoroso com ele.
“Por que, eu devia esperar por algum tipo de privilégio? A idade, com seus visíveis desconfortos, chega para todos. Ela atinge um homem aqui, outro lá. O seu golpe sempre atinge uma parte vital. A vitória final sempre pertence ao Verme Conquistador.”
Acendam – acendam as luzes – todas elas
E acima de cada forma trêmula
A cortina, um pano mortuário
Desce, com a fúria de uma tempestade,
E os anjos, todos pálidos e lívidos,
levantando, revelando, afirmam
Que a peça é a tragédia “Homem”,
E seu herói o Verme Conquistador.
(Edgar Allan Poe)
“Não me revolto contra a ordem universal, afinal vivi mais de setenta anos. Eu tive o que comer. Desfrutei de muitas coisas – do companheirismo da minha esposa, dos meus filhos, do pôr-do-sol. Eu vi as plantas crescerem na primavera. Algumas vezes recebi um aperto de mão amigo. Uma ou duas vezes encontrei um ser humano que quase me entendeu. O que mais eu posso querer?”
– O senhor é famoso. O seu trabalho influencia a literatura de todo o mundo. O homem olha para si e para a vida com olhos diferentes por sua causa. E, há pouco tempo, quando o senhor fez 70 anos, o mundo se uniu para homenageá-lo – com exceção da sua própria universidade!
“Se a Universidade de Viena me aceitasse, eu teria me sentido muito constrangido. Não há razão para eles me aceitarem ou à minha doutrina porque eu estou com 70 anos. Não dou nenhuma importância ilógica aos números. A fama só chega quando já estamos mortos, e, para ser franco, o que acontece depois da morte não me interessa. Não aspiro à glória póstuma. A minha modéstia não é nenhuma virtude.”
– O fato do seu nome ser lembrado não significa nada para o senhor?
“Absolutamente nada, mesmo que ele seja realmente lembrado, o que não é certo. Eu estou mais interessado no destino dos meus filhos. Espero que a vida deles não seja tão dificil. Não posso torná-las muito mais fácil. A guerra praticamente acabou com a minha modesta fortuna, as economias de uma vida inteira. Entretanto, felizmente, a idade não pesa tanto para mim. Eu ainda sou capaz de seguir em frente! Meu trabalho ainda me dá prazer.”
Nós andávamos por um caminho do jardim da casa. Com as mãos sensíveis, Freud acariciou um arbusto que florescia.
“Estou muito mais interessado nestas flores do que no que possa acontecer comigo depois que eu morrer.”
– Então, no fundo, o senhor é um pessimista?
“Não, não sou. Só que eu não permito que nenhuma reflexão filosófica me tire a alegria das coisas simples da vida.”
– O senhor acredita na continuidade do ser após a morte, seja lá de que maneira for?
“Eu não penso nesse assunto. Tudo o que nasce, um dia morre. Por que então eu também não morreria?”
– O senhor gostaria de retornar à vida, assumindo uma nova forma? Em outras palavras, o senhor não gostaria de ser imortal?
“Para ser franco, não. Quem identifica as razões egoístas que se escondem sob o comportamento humano não tem a menor vontade de voltar. A vida, movendo-se em círculos, ainda seria a mesma. Além disso, mesmo que o eterno retorno de todas as coisas, como disse Nietzsche, nos vestisse com novas roupas, que utilidade isso poderia ter sem a memória? Não haveria ligação entre o passado e o futuro. No que me diz respeito, estou muito satisfeito em saber que o eterno absurdo de viver terminará um dia. Nossa vida se resume a uma série de obrigações, uma luta sem fim entre o ego e o seu ambiente. O desejo de um prolongamento excessivo da vida me parece absurdo.”
– O senhor não aprova as tentativas do seu colega Steinach de prolongar o ciclo da existência humana?
“Steinach não faz nenhuma tentativa para prolongar a vida. Ele simplesmente luta contra a velhice. Ao aumentar a reserva de forças que temos dentro de nós, ele ajuda o corpo a resistir à doença. A operação de Steinach às vezes detém os acidentes biológicos, como o câncer, nos seus primeiros estágios. Ela toma a vida mais tolerável. Mas não a torna mais feliz. Não há razão para que o homem queira viver mais. Mas temos todas as razões para querer viver com o mínimo de desconforto possível. Sou bastante feliz, porque não sinto dores e sou grato aos pequenos prazeres da vida, aos meus filhos e às minhas flores!”
– Bernard Shaw diz que vivemos muito pouco. Ele acha que, se quiser, o homem pode prolongar o tempo de vida humana, se a força de vontade suplantar as forças da evolução. A humanidade, segundo ele, pode recuperar a longevidade dos patriarcas.
“É possível que a morte em si não seja uma necessidade biológica.Talvez os homens morram porque queiram morrer. Assim como o amor e o ódio pela mesma pessoa coexistem dentro de nós, a vida é uma mistura do desejo de viver com o desejo ambivalente de morrer. Da mesma forma que um elástico tende a voltar ao seu formato original, toda matéria viva, consciente ou inconscientemente, anseia pela inércia completa e absoluta da existência inorgânica. Os desejos de morrer e de viver convivem lado a lado dentro de nós. A Morte é a companheira do Amor. Juntos, eles governam o mundo. Essa é a mensagem do meu livro, Além do princípio do prazer. No início, a psicanálise achava que o Amor era o sentimento mais importante. Hoje, sabemos que a Morte tem a mesma importância. Biologicamente, todo ser humano, não importando a intensidade do seu desejo de viver, anseia pelo Nirvana, pela fim da febre chamada vida, pelo seio de Abraão. O desejo pode ser disfarçado por rodeios. Entretanto o objetivo final da vida é a própria extinção!”
– Essa, exclamei, é a filosofia da autodestruição. Ela justifica o automassacre. Levaria à conclusão lógica do suicídio mundial previsto por Eduard von Hartmann.
“A humanidade não escolhe o suicídio, porque as leis da sua natureza não aceitam o caminho direto para a própria meta. A vida deve completar o seu ciclo de existência. Em qualquer ser humano normal, o desejo de viver é o bastante para compensar o desejo de morrer, embora, no final, o desejo de morrer prove ser mais forte. Nós podemos considerar a idéia de que a morte nos chega por vontade própria. É possível que derrotássemos a morte, não fosse pelo aliado que ela tem dentro de nós mesmos. Nesse sentido, acrescentou Freud com um sorriso, talvez seja certo dizer que toda morte é um suicídio disfarçado.”
Começou a esfriar no jardim.
Continuamos a conversa no escritório.
Vi uma pilha de escritos com a letra de Freud sobre a escrivaninha.
– Em que o senhor está trabalhando?
“Estou escrevendo uma defesa da análise leiga, a psicanálise praticada por leigos. Os médicos querem tornar ilegal a análise feita pelos que não são médicos registrados. A história, essa velha plagiadora, se repete a cada nova descoberta. Os médicos, a princípio, combatem qualquer nova verdade. Depois eles tentam monopolizá-la.”
– O senhor teve um grande apoio dos leigos?
“Alguns dos meus melhores alunos são leigos.”
– O senhor pratica a psicanálise com muita frequência?
“Claro. Nesse exato momento, eu estou trabalhando em um caso difícil, esclarecendo os conflitos psíquicos de mais um paciente interessante. Minha filha também é uma psicanalista, como o senhor pode ver…”
Nesse momento, a senhorita Anua Freud surgiu seguida por seu paciente, um rapaz de 11 anos, de feições obviamente anglo-saxônicas. O menino parecia muito feliz, esquecido do conflito da própria personalidade.
– O senhor se auto-analisa?
“É claro. O psicanalista deve se auto-analisar com frequência. Ao nos analisarmos, nos tornamos mais capazes de analisar outras pessoas. O psicanalista é como o bode expiatório dos hebreus. As pessoas colocam a culpa dos seus pecados nele. Ele deve exercer a sua arte com perfeição para se livrar do peso colocado sobre ele.”
– Sempre me pareceu que a psicanálise desperta em todos aqueles que a praticam o espírito da caridade cristã. Não há nada na vida humana que a psicanálise não nos permita entender. “Tout comprendre c’est tout pardonner.”
“Pelo contrário” – enfureceu-se Freud, as feições assumindo a severidade arrebatada de um profeta hebreu – “entender não é perdoar .A psicanálise não apenas nos ensina o que temos que suportar, ela também ensina o que temos que evitar. Ela nos diz o que deve ser eliminado. A tolerância do mal não é, de maneira nenhuma, uma consequência do conhecimento.”
De repente eu entendi por que Freud brigara tão seriamente com os seguidores que o abandonaram, por que ele não consegue perdoar aqueles que se afastaram do caminho da psicanálise ortodoxa. O seu senso de integridade é uma herança dos seus ancestrais. Uma herança da qual ele se orgulha, assim como se orgulha da própria raça.
“Minha língua é o alemão” – explicou-me – “Minha cultura, minhas conquistas são alemãs. Considerei-me um alemão do ponto de vista intelectual, até que percebi o crescimento do anti-semitismo na Alemanha e na Áustria alemã. Desde então, não me considero mais um alemão. Prefiro me considerar um judeu.”
De certa maneira fiquei decepcionado com esse comentário.
Parecera-me que o espírito de Freud estava acima de qualquer preconceito de raça, que ele não seria atingido por qualquer rancor pessoal. Ainda assim, aquela mesma indignação, a raiva honesta, conquistou-me por torná-lo mais humano.
Aquiles seria insuportável, não fosse por seu calcanhar!
– Estou feliz – comentei – Herr Professor, que o senhor também tenha os seus complexos, que o senhor também exponha a sua mortalidade.
“Os nossos complexos” – respondeu Freud – “são a fonte da nossa fraqueza e, com frequência, também da nossa força.”
– Quais seriam os meus complexos?”,
“Uma análise séria levaria, pelo menos, um ano. Talvez demorasse até mesmo uns dois ou três anos. O senhor tem dedicado muitos anos da sua vida à caça de leões. O senhor tem procurado, ano após ano, as grandes personalidades da sua geração, invariavelmente homens mais velhos. Posso citar Rooseve1t, o Kaiser, Hindenburg, Briand, Foch, Joffre, George Brandes, Gerhart Hauptmann e George Bernard Shaw…”
– Isso é parte do meu trabalho.
“Mas também é uma preferência. O homem importante é um símbolo. A sua busca é afetiva. O senhor está à procura do homem importante que irá tomar o lugar do seu pai. Isso é parte do complexo que o senhor tem em relação ao seu pai.”
Neguei a afirmação de Freud com veemência. Entretanto, após refletir, parece-me que pode haver alguma verdade, insuspeita para mim, na sua sugestão casual. Talvez seja o mesmo impulso que me levou a ele.
– No seu trabalho O Judeu Errante – acrescentei – o senhor estende essa busca ao passado. O senhor é o eterno Explorador do Homem.
Eu queria poder ficar aqui durante o tempo que fosse necessário para ver o meu interior através dos seus olhos. Talvez, como a Medusa, eu morresse de medo ao ver minha própria imagem! Entretanto acho que conheço bastante a psicanálise. Eu iria prever, ou tentar prever, as suas intenções.
“A inteligência de um paciente” – respondeu Freud – “não é um empecilho. Pelo contrário, às vezes, ela facilita o trabalho.”
Nesse aspecto, o mestre da psicanálise difere de muitos dos seus adeptos, que se ressentem de qualquer dedução feita pelos próprios pacientes sob os cuidados deles. A maioria dos psicanalistas emprega o método da “livre associação” de Freud. Eles encorajam o paciente a dizer qualquer coisa que lhes venha à cabeça, não importando o quanto o que dizem possa ser idiota, obsceno, inoportuno ou irrelevante. Seguindo pistas que parecem não ter importância, encontram os dragões psíquicos que assustam o paciente, afugentando-os. Eles não apreciam o desejo de cooperação ativa do paciente, pois têm medo que, quando descoberta a direção da sua investigação, os desejos e a resistência do paciente lutem inconscientemente para manter seus segredos, desviando o caçador psíquico da sua pista. Freud também reconhece esse perigo.
– Às vezes eu penso – eu disse – se nós não seríamos mais felizes se conhecêssemos menos o processo que forma os nossos pensamentos e emoções. A psicanálise tira o encantamento da vida, quando segue a pista de cada um dos sentimentos até os seus complexos básicos. Não ficamos mais felizes ao descobrir nosso lado selvagem, criminoso e animal.
“O que o senhor tem contra os animais?” – respondeu Freud – “A comunidade animal é infinitamente melhor do que a humana.”
– Porquê?
“Porque os animais são muito mais simples. Eles não sofrem de personalidade dividida ou desintegração do ego, problemas que surgem da tentativa do homem de se adaptar a padrões de civilização que são sofisticados demais para o seu mecanismo intelectual e psíquico.
O selvagem, assim como o animal, é cruel, mas ele não tem a maldade do homem civilizado. A maldade é a vingança do homem contra a sociedade pelas restrições impostas a ele. É essa vingança que dá vida ao reformista profissional e às pessoas intrometidas. O selvagem pode cortar a sua cabeça, comê-lo, torturá-lo. mas ele vai poupá-lo das pequenas provocações que, às vezes, tornam a vida em uma comunidade civilizada quase intolerável. Os hábitos e as idiossincrasias mais desagradáveis do homem, como a trapaça, a covardia e a falta de respeito, são produzidos pela sua adaptação incompleta a uma civilização complicada. É o resultado do conflito entre os nossos instintos e a nossa cultura. As emoções intensas, diretas e simples de um cachorro, ao abanar o rabo ou latir quando é contrariado, são muito mais agradáveis! As emoções de um cachorro – acrescentou Freud pensativo – me fazem lembrar um dos heróis da antiguidade. Talvez seja por isso que nós inconscientemente damos aos cães nomes de heróis da antiguidade como Aquiles ou Heitor.”
O meu próprio cachorro – interrompi – se chama Ajax. Freud sorriu. Fico feliz, que ele não consiga ler, acrescentei. Se pudesse latir, expressando sua opinião sobre traumas psíquicos e complexos de Édipo, ele não seria um membro tão querido da família!
– Até mesmo o senhor, professor, acha a existência muito complexa. No entanto, me parece que o senhor mesmo é, em parte, responsável pela complexidade da civilização moderna. Antes que o senhor inventasse a psicanálise. Ninguém sabia que a personalidade era dominada por um exército beligerante de complexos bastante censuráveis. A psicanálise fez da vida um complicado quebra-cabeça.
“De jeito nenhum” – respondeu Freud – “a psicanálise simplifica a vida. Nós atingimos uma nova síntese depois da análise. A psicanálise cria uma nova ordem para o labirinto onde estão perdidos certos impulsos, e tenta conduzi-los para o lugar ao qual pertencem. Ou, usando outra metáfora, ela é o fio que conduz o homem para fora do labirinto do seu próprio inconsciente.”
– Em uma visão superficial, parece, entretanto, que a vida humana nunca foi tão complexa. E, a cada dia, alguma nova ideia, apresentada pelo senhor ou por um dos seus discípulos, torna o problema do comportamento humano mais enigmático e contraditório.
“Pelo menos a psicanálise nunca fecha as portas para uma nova verdade.”
– Alguns dos seus alunos, mais ortodoxos do que o senhor, se agarram a qualquer declaração que o senhor faça.
“A vida muda e a psicanálise também – observou Freud – Estamos só no princípio de uma nova ciência.”
– Acho a estrutura científica que o senhor criou muito complexa. E os elementos dessa estrutura, como a teoria da substituição, da sexualidade infantil, do simbolismo dos sonhos, etc., parecem permanentes.
“No entanto, torno a dizer, nós só estamos começando. Sou apenas um principiante. Consegui trazer à tona muito do que estava enterrado nas camadas mais profundas da mente. Mas, enquanto eu só descobri alguns templos, outros podem descobrir um continente.”
– O senhor ainda dá grande importância ao sexo?
“Respondo com as palavras do grande poeta Walt Whitman: Mas não haveria nada, se não houvesse o sexo. Entretanto, como já disse, hoje em dia, eu dou a mesma importância ao que está além do prazer – a morte, a negação da vida. Esse desejo explica porque alguns homens gostam da dor – ela representa um passo em direção à morte! O desejo da morte explica por que todos os homens procuram o descanso eterno, por que os poetas agradecem:
Quaisquer deuses que existam
Não há vida que dure para sempre
Os homens mortos nunca renascem,
E até o rio mais cansado
Segue confiante na direção do mar
(Algeron Charles Swinburne, O Jardim de Proserpina)
– Shaw, como o senhor, não deseja viver para sempre, mas ele acha o sexo desinteressante, comentei.
“Shaw” – respondeu Freud, sorrindo – “não entende o sexo. Ele não faz a mais remota idéia do que seja o amor. Não existe nenhum relacionamento amoroso real nas suas peças. Ele transforma o caso de amor de César – talvez a maior paixão da história – em uma piada. Deliberadamente, para não dizer maliciosamente, ele despe Cleópatra de todo o seu esplendor e a rebaixa à condição de uma mulher insignificante, petulante e exagerada.
A razão para a estranha atitude de Shaw em relação ao amor e para a sua negação do impulso primordial de todas as ações humanas, o que tira de suas peças o atrativo universal apesar da sua grande inteligência, está na natureza da sua psicologia. Em um de seus prefácios, Shaw enfatiza o aspecto ascético da sua personalidade.
Posso ter cometido muitos erros, mas tenho certeza que não errei ao enfatizar a predominância do instinto sexual. Porque o instinto sexual é tão forte que se choca com muita frequência contra as convenções e salvaguardas da civilização. A humanidade, em defesa própria, procura negar a importância suprema do sexo.
Analise qualquer emoção humana, não importa o quanto ela esteja distante da esfera do sexo, e o senhor vai encontrar com certeza, em algum lugar, o impulso primordial, ao qual a própria vida deve a sua perpetuação.”
– É certo que o senhor conseguiu incutir o seu ponto de vista sobre todos os escritores modernos. A psicanálise deu nova força à literatura.
“Ela também recebeu contribuições da literatura e da filosofia. Nietzsche foi um dos primeiros psicanalistas. É incrível o quanto a intuição dele se antecipou às nossas descobertas. Ninguém identificou com mais clareza as razões para o comportamento humano e a luta do princípio do prazer pelo eterno domínio. O seu Zaratustra diz:
A dor grita: Vai!
Mas o prazer quer eternidade
Pura, profundamente eternidade!
Pode ser que a psicanálise seja menos discutida na Áustria e na Alemanha do que nos Estados Unidos, mas a sua influência sobre a literatura, no entanto, é enorme. Thomas Mann e Hugo von Hofmansthal nos devem muito. Schnitzler acompanha, em grande parte, o meu desenvolvimento. Ele expressa através da poesia muito do que eu tento transmitir cientificamente. Mas o doutor Schnitzler não é apenas um poeta, ele é também um cientista.”
– O senhor, respondi, não é apenas um cientista, é também um poeta. A literatura americana, continuei, está impregnada pela psicanálise. Rupert Hughes, Harvey O’Higgins e outros são seus intérpretes. É quase impossível abrir um novo romance recente sem encontrar alguma referência a psicanálise. Entre os dramaturgos, Eugene O’Neill e Sydney Howard devem muito ao senhor. The Silver Cord (O cordão de prata), por exemplo, é uma mera dramatização do complexo de Édipo.
“Eu sei disso, sou grato pelo reconhecimento, mas temo pela minha própria popularidade nos Estados Unidos. O interesse dos americanos pela psicanálise não é muito profundo. A grande popularidade leva à aceitação superficial sem uma pesquisa séria. As pessoas apenas repetem o que escutam no teatro ou leem nos jornais. Eles pensam que compreendem a psicanálise, porque conseguem repetir o nosso jargão! Eu prefiro o estudo mais intenso da psicanálise nos centros europeus.
Os Estados Unidos foram o primeiro país a me reconhecer oficialmente. A Clark University me conferiu um grau honorário quando eu ainda estava condenado ao ostracismo na Europa. No entanto os Estados Unidos contribuíram muito pouco para o estudo da psicanálise.
Os americanos são generalizadores inteligentes, mas raramente são pensadores criativos. Além disso, os médicos americanos, bem como os austríacos, tentam apropriar-se do campo. Deixar que a psicanálise permaneça somente nas mãos dos médicos será fatal para o seu desenvolvimento A formação médica pode ser tanto uma vantagem quanto uma desvantagem para o psicanalista. Ela é uma desvantagem quando certas convenções científicas aceitas se tornam arraigadas demais na mente do estudante.”
Freud precisa dizer a verdade a todo custo! Não consegue se forçar a lisonjear os Estados Unidos, onde tem a maioria dos seus admiradores. Não consegue, mesmo estando em desvantagem, fazer as pazes com a profissão médica, que até hoje o aceita com grande relutância. Apesar da sua integridade inflexível, Freud é muito cortês. Ele ouve qualquer sugestão com paciência, sem jamais tentar intimidar o entrevistador. É raro um convidado partir sem algum presente, uma lembrança da sua hospitalidade!
A noite chegara.
Estava na hora de pegar o trem de volta para a cidade que um dia abrigara o esplendor imperial dos Habsburgos.
Freud, acompanhado pela esposa e pela filha, subiu a escada que ligava o seu retiro nas montanhas à rua, para se despedir de mim. Ele me pareceu triste e sombrio, quando acenou para mim.
“Não me faça parecer um pessimista” – comentou depois do último aperto de mão – “Eu não desprezo o mundo. Expressar insatisfação para com o mundo é só uma outra maneira de cortejá-lo, para conseguir plateia e aplausos!
Eu não sou um pessimista, não enquanto tiver meus filhos, minha mulher e minhas flores! As flores” – acrescentou ele sorrindo – “felizmente não têm personalidade ou complexidades. Adoro as minhas flores. E não sou infeliz, pelo menos não mais do que outras pessoas.”
O apito do meu trem soou na noite. O carro me levou à estação com rapidez Aos poucos, a figura levemente curvada e a cabeça grisalha de Sigmund Freud desapareceram ao longe.
Como Édipo, Freud olhou fundo nos olhos da Esfinge. O monstro propõe seu enigma para qualquer viajante. O andarilho que não souber a resposta será cruelmente agarrado e atirado contra as rochas. Mesmo assim, ela talvez seja mais gentil com aqueles que destrói do que com os que adivinham seu segredo.”
por George Sylvester Viereck, Áustria, 1930
por George Sylvester Viereck, Áustria, 1930
Descrição de Fábio Altman:
“Sigmund Freud (1856-1939), o judeu austríaco fundador da psicanálise, formou-se em medicina em Viena. Aperfeiçoou seus estudos em Paris, com Jean-Marie Charcot, que usava a hipnose como tratamento para a histeria. Ao romper com Charcot e com a prática da hipnose, Freud se deparou com o mecanismo de defesa dos pacientes e pode então desenvolver a teoria do inconsciente e sua própria técnica terapêutica, baseada na livre associação de ideias. Para o médico austríaco, a neurose adulta era resultado da sexualidade infantil. Em 1900, Freud publicou A interpretação dos sonhos, seu primeiro trabalho revolucionário – obra que ele havia terminado anos antes mas que guardou para lançá-la no despertar de um novo século. Ele tinha razão ao adiá-lo: o século XX foi o tempo de Sigmund Freud. Em 1938, quando os nazistas anexaram a Áustria, depois de terem banido a psicanálise da Alemanha, Freud imigrou para a Inglaterra em companhia de sua Anna, que se tornaria conhecida como psicóloga infantil. Freud morreu de câncer na garganta.”
“George Sylvester Viereck (1884-1962), jornalista americano de origem judaico-alemã, iniciou sua carreira nas letras escrevendo poesias antes de se tornar um dos grandes entrevistadores da imprensa americana. Algumas de suas mais importantes conversas foram publicadas em um volume chamado Glimpses of the great, publicado simultaneamente em Nova Iorque, Londres e Berlim em 1930.”
In.:
ALTMAN, Fábio (Org.). A Arte da Entrevista. São Paulo: Boitempo, 2004. P. 102 – 112. Sigmund Freud entrevistado por George Sylvester Viereck, Glimpses of the Great, 1930.
As caricaturas de Freud que ilustram este post são de Cássio Loredano, que fez as ilustrações do livro organizado por Fabio Altman.
Mas sobre A Arte da Entrevista em:
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