No dia 29 de setembro de 1967, estreava no Teatro Oficina (SP) uma das montagens mais significativas da história do teatro brasileiro: O Rei da Vela, baseada na peça homônima de Oswald de Andrade. A estreia coincidiu com a reinauguração do edifício onde o grupo paulistano mantinha sua sede, lembrando que mais ou menos um ano e meio antes, no mesmo local, a antiga havia sido destruída por um incêndio.
Para se manter enquanto a nova sede era reerguida, o Oficina foi para o Rio de Janeiro, onde apresentou uma mostra de repertório composta de três espetáculos: Pequenos Burgueses, Andorra e Quatro num Quarto. Nos momentos de ócio, foram organizados cursos especiais para o elenco, ministrados por Leandro Konder (“Filosofia e Pensamento Cultural”) e Luiz Carlos Maciel (“Interpretação Social”). Deste surgiu a ideia de se ler a esquecida peça de Oswald de Andrade (então inédita nos palcos), escrita em 1933 e publicada em 1937.
Até aquele momento, desde sua profissionalização, acontecida em 1961, o Oficina só havia encenado dois textos de autores brasileiros (José, do Parto à Sepultura, de Augusto Boal, e Toda Donzela Tem um Pai Que É uma Fera, de Gláucio Gil). Nenhuma dessas montagens, diga-se de passagem, teve direção de José Celso Martinez Corrêa, que à altura de O Rei da Vela já se tornara uma espécie de encenador “oficial” da companhia. De todo modo, conforme afirma o pesquisador Armando Sérgio da Silva, autor de um livro sobre a história do Teatro Oficina, os cursos acabaram despertando no grupo um clima geral de insatisfação com o seu passado, principalmente no que concerne ao cosmopolitismo do seu repertório, do ponto de vista dramatúrgico e cênico. Com efeito, “[…] sentiu-se a necessidade premente de se estudar a ‘cultura brasileira’, de se encontrar o homem brasileiro e o seu meio geográfico, social e político”.
Quando Luiz Carlos Maciel indicou para os integrantes do Oficina a leitura de O Rei da Vela, peça que eles já conheciam, houve de início certa desconfiança, pelo fato de alguns considerarem o texto oswaldiano a manifestação de um vanguardismo algo ultrapassado. De acordo com o testemunho de Fernando Peixoto, essa opinião mudou, literalmente, da noite para o dia, quando, num apartamento em Ipanema, Renato Borghi leu o texto na íntegra em voz alta, convencendo a todos e todas da necessidade de sua encenação naquele momento histórico pelo qual o Brasil passava.
Isso porque, dentre outros motivos, O Rei da Vela se revelou perfeito para a pesquisa empreendida pelo Oficina à época, centrada no comportamento do homem brasileiro com vistas, em última instância, à criação de uma linguagem cênica que se mostrasse o mais nacional possível. Para tal, de maneira bem antropofágica, como seria do gosto do escritor paulista, tudo o que pudesse ser útil à construção de uma cena autêntica em O Rei da Vela foi incorporado, como, por exemplo, o circo, o teatro de revista e a chanchada. Ou seja, manifestações cênicas normalmente desprezadas pela elite nativa mas que, na ótica dos modernistas de 1922, seriam verdadeiras “reservas de nacionalidade” diante do teatro hegemônico das primeiras décadas do século XX, marcado, em tese, por uma profunda alienação em relação às coisas do Brasil. A esse respeito, vale lembrar da enorme admiração que os modernistas paulistas tinham pelo palhaço Piolin e da verdadeira campanha promovida por um escritor como Antônio de Alcântara Machado em favor da nacionalização do teatro brasileiro daquele período, sempre tomando como modelo o Circo Alcebíades (onde Piolin se apresentava).
Das referências estrangeiras, algo totalmente previsto no manifesto elaborado por Oswald de Andrade em 1928, prevaleceram alguns expedientes tomados da poética de Bertolt Brecht, em especial o conceito de gestus, uma das bases do curso elaborado por Luiz Carlos Maciel no Rio de Janeiro. Muito sumariamente, o gestus brechtiano seria a atitude social de uma personagem em relação à outra expressa por meio de sua gestualidade. Em se tratando de O Rei da Vela, peça na qual as relações de poder entre as diferentes classes sociais no Brasil estão em primeiro plano, semelhante conceito de origem alemã acabaria se mostrando um prato cheio para o elenco do Oficina na composição dos papéis.
Abelardo I, por exemplo, o burguês dominante dos primeiros atos interpretado por Renato Borghi, no intuito de realçar sua posição de superioridade para com os subordinados, fazia movimentos com a pélvis que aludiam à penetração sexual, além de, vez ou outra, coçar a genitália como um típico cafajeste brasileiro, num gesto que denotaria ostentação e/ou ociosidade. Já Abelardo II, o burguês dominado representado por Fernando Peixoto, para sugerir sua carência de poder, aparecia mancando durante todo o espetáculo, pelo menos até o momento em que assumia o controle dos negócios, quando parava de mancar para adquirir a postura de um toureiro espanhol.
Tudo isso compunha, juntamente com outros elementos extremamente significativos presentes no cenário e no figurino de Hélio Eichbauer, uma escritura cênica relativamente autônoma em relação ao texto oswaldiano, algo que deixou muita gente a um só tempo admirada e desconcertada. Um deles, com certeza, foi Décio de Almeida Prado, o principal crítico do teatro paulista daqueles anos. Embora, de uma maneira geral, ele tenha elogiado o espetáculo, algumas restrições suas tecidas em relação ao terceiro ato acabaram gerando certa controvérsia, por demonstrarem um ponto de vista demasiadamente atrelado à dramaturgia que iria de encontro à encenação propugnada por José Celso Martinez Corrêa. Para o notório crítico, haveria uma dissonância no terceiro ato entre o estilo utilizado para compor a cena, inspirado na ópera, e as sugestões da peça.
Anos depois, ao analisar O Rei da Vela numa perspectiva mais distanciada, Décio de Almeida Prado admitiu que o trabalho de Zé Celso “[…] não era mais o de interpretar o texto, contentando-se com essa função subsidiária, como até aquele instante se fizera, mas o de abrir asas à imaginação, criando um universo cênico que se animava no palco quase com vida própria, prolongando até o grotesco cada alusão – sobretudo as obscenas – que Oswald semeara generosamente em seu painel”.
Outra figura importante que também não deixou de expor seu incômodo com o espetáculo foi Nelson Rodrigues. De acordo com seu biógrafo, o jornalista Ruy Castro, o sucesso de estima e de público da obra indignaram o grande dramaturgo, principalmente por conta de alguns comentários que diziam ter O Rei da Vela superado Vestido de Noiva (1943), a montagem que o consagrou como um dos precursores do teatro brasileiro moderno. Para tais detratores, os louros pelo pioneirismo deveriam ser concedidos, em retrospecto, a Oswald de Andrade, lembrando que a peça deste antecedia em dez anos a de Nelson. Após assistir à badalada encenação do Teatro Oficina no Rio de Janeiro, o escritor pernambucano asseverou: “Um belo espetáculo e um elenco admirável. O diretor, José Celso, fez um nobilíssimo esforço. No fim, o texto era uma laranja chupada (o diretor extraíra todo o caldo). […]. E, de fato, se lhe retirassem os palavrões enxertados, O Rei da Vela não ficaria de pé cinco minutos”.
Em que pese a montagem de Zé Celso ter suscitado intensos debates, despertando as mais diversas paixões estéticas e, também, políticas, o fato é que ela se tornou uma espécie de catalizadora do chamado Tropicalismo, juntamente com os penetráveis de Hélio Oiticica que deram nome ao movimento e o filme Terra de Transe, de Glauber Rocha (1966). Este, aliás, influenciou diretamente a concepção de O Rei da Vela, notadamente o terceiro ato, aquele mesmo censurado por Décio de Almeida Prado. Percebendo o influxo de uma obra sobre a outra, o crítico alegou, em defesa do seu ponto de vista, que o cineasta baiano seria o “anti-Oswald por definição”.
Contudo, para além da influência, algo jamais negado pelos principais integrantes do grupo, O Rei da Vela não deixou de ser, também, uma resposta que o teatro pretendia dar ao cinema, no sentido de se mostrar tão capaz como a “sétima arte” na discussão dos problemas nacionais. Embora seja impossível abordar aqui todos os aspectos demandados pelo espetáculo, registre-se que ele está sendo reencenado pelo Teatro Oficina, com estreia prevista para o dia 21 de outubro no Sesc Pinheiros (SP). Ou seja: tal como a original, a montagem da vez também será vista em palco italiano. Oportunidade única para se observar de que modo essa nova leitura da peça conferida por Zé Celso irá “dialogar” com o tempo presente, e não, é claro, para se ter acesso à encenação de 1967 em termos arqueológicos, algo inimaginável em se tratando de um artista tão inquieto como o referido diretor teatral. De resto, caso algum leitor ou leitora queira se aprofundar mais no assunto que motivou este artigo, seguem algumas dicas bibliográficas fundamentais.
por Rodrigo Morais
Coluna: Teatro
Para saber mais:
BRANDÃO, Tânia. “As Companhias Teatrais Modernas”. In: História do Teatro Brasileiro, volume 2: do modernismo às tendências contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, SescSP, 2013.
CORRÊA, José Celso Martinez Corrêa. Primeiro Ato: Cadernos, Depoimentos, Entrevistas (1958-1974). São Paulo: Ed. 34, 1998.
COSTA, Iná Camargo. “Teatro e Revolução nos Anos 60”. In: Sinta o Drama. Petrópolis: Vozes, 1998.
DORIA, Gustavo. Moderno Teatro Brasileiro: Crônica de suas Raízes. Rio de Janeiro: SNT, 1975.
GEORGE, David. Teatro e Antropofagia. São Paulo: Global, 1985.
LABAKI, Aimar. José Celso Martinez Corrêa. São Paulo: Publifolha, 2002.
MARTINS, Mariano Mattos. OFICINA 50 + Labirinto da Criação. São Paulo: Pancron Indústria Gráfica, 2013.
MOSTAÇO, Edélcio. Teatro e Política: Arena, Oficina e Opinião. São Paulo: Annablume, 2016.
PEIXOTO, Fernando. Teatro Oficina (1958-1982): Trajetória de uma Rebeldia Cultural. São Paulo: Brasiliense, 1982.
SILVA, Armando Sérgio. Oficina: do Teatro do Te-ato. São Paulo: Perspectiva, 1981.
PRADO, Décio de Almeida. O Teatro Brasileiro Moderno. São Paulo: Perspectiva, 2009.
______. “O Teatro e o Modernismo”. In: Peças, Pessoas, Personagens – O teatro brasileiro de Procópio Ferreira a Cacilda Becker. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
______. “O Rei da Vela”. In: Exercício Findo. São Paulo: Perspectiva, 1987.