Antonio Candido: o homem que nos ensinou a pensar por conta própria
por Rodrigo Morais Leite
Antonio Candido, além de grande crítico literário e historiador, foi um dos maiores pensadores da cultura brasileira, à altura de nomes como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior. Carioca criado em Minas e formado intelectualmente em São Paulo, Candido foi um dos primeiros egressos da USP, universidade surgida em 1934 com a fundação da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL).
Começou sua carreira ao criar, em 1941, juntamente com alguns colegas do curso de Filosofia, a revista Clima, que duraria até 1944. Surgia o chamado “Grupo Clima”, do qual fizeram parte, entre outros, Décio de Almeida Prado, Paulo Emílio Sales Gomes e Lourival Gomes Machado, intelectuais que, ao longo dos anos, se tornariam referências em suas áreas de atuação.
Alvos da poderosa veia cômica de Oswald de Andrade, esses garotos, por apresentarem um discurso próprio da mentalidade universitária, mais formal e sisudo, ganhariam do escritor modernista o impagável apelido de chato-boys, do qual jamais se livraram. Contudo, em que pese o aparente “choque de gerações”, caberiam a Antonio Candido e seus colegas, ao adentrarem na USP como professores, academizar muitos dos preceitos teóricos defendidos pela primeira geração modernista, sistematizando-os.
É o que pensa, por exemplo, Abel Barros Baptista, professor de literatura brasileira na Universidade Nova de Lisboa e autor de um ensaio sobre a obra de Candido intitulado O Cânone como Formação. Segundo ele, “o trabalho crítico de Antonio Candido, prolongando o projeto literário do Modernismo de 1922, produziu um paradigma crítico, ainda dominante, que, articulado com uma dimensão institucional decisiva, a universitária, estabeleceu a possibilidade de desconhecer Portugal ‘pura e simplesmente’, dando esse desconhecimento como resultado natural do processo de ‘formação’ da literatura brasileira”.
E por que desconhecer Portugal “pura e simplesmente”? Porque, de acordo com os pressupostos da historiografia literária candidiana, nossa literatura não teria exatamente nascido com a chegada dos portugueses à América, conforme outros historiadores defendem. Em sua obra magna, Formação da Literatura Brasileira, de 1959, Candido expõe a famosa tese segundo a qual uma literatura só se torna aspecto orgânico da civilização quando, em um determinado momento, três elementos se conjugam: “a existência de um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive; um mecanismo transmissor (de modo geral, uma linguagem traduzida em estilos), que liga uns aos outros”.
É a partir desse ponto que se forma aquilo nomeado por Candido de sistema literário, condição fundamental para a existência, no Brasil ou em outras nações americanas, de uma literatura propriamente dita, ligada por certos denominadores comuns passíveis de serem reconhecidos. Esta, devido à sua organicidade, se diferenciaria das chamadas manifestações literárias, isto é, daquela literatura produzida quando tais elementos ainda não haviam se conjugado.
Assim compreendida, percebe-se que a teoria elaborada pelo crítico, do ponto de vista historiográfico, seria muito mais teleológica do que genealógica, na medida em que o seu eixo se desloca não para uma origem, mas, sim, para um fim. Isso explica, ao menos em parte, o porquê de Candido “desconhecer” Portugal em sua obra, conferindo pouca ou nenhuma atenção à literatura que aqui se manifestou entre o “descobrimento” (1500) e o advento do arcadismo (em torno de 1750), precisamente aquela mais atrelada à pátria-mãe. Como defende Abel Barros Baptista, a teoria da formação significaria, em última instância, “[…] a impossibilidade da origem”.
Focado em dois momentos considerados decisivos na configuração do sistema literário brasileiro, o arcadismo e o romantismo, o primeiro por integrar e o segundo por diferenciar nossa literatura em relação às letras universais, não se encontra em Formação da Literatura Brasileira nada que preceda ou ultrapasse essas balizas. Aquém ou além do recorte proposto ficaram de fora, por exemplo, o barroco e o realismo, ausências que até hoje desconcertam certos leitores “incautos”, por não encontrarem em Formação nada a respeito de autores como Gregório de Matos ou Raul Pompeia.
Como não poderia deixar de ser, tais ausências, à época do lançamento do livro, acabaram ensejando algumas polêmicas, as principais, salvo engano, motivadas por Afrânio Coutinho e Haroldo de Campos. Enquanto aquele, centrado em questões genealógicas, entendia que a literatura brasileira nascera pronta com a carta de Pero Vaz de Caminha, o último assumiu como causa a inclusão do barroco dentro do esquema proposto por Candido. Polêmicas à parte, observando sua obra em conjunto, percebe-se que, em primeiro lugar, mais do que um estudo historiográfico, Formação seria mesmo um livro de teoria literária; em segundo lugar, para uma completa apreensão dessa teoria, é necessária a leitura de outros trabalhos do autor, alguns deles escritos com a intenção precisa de complementar o quadro anteriormente exposto em Formação.
Só assim é possível entrever algumas das principais premissas do pensamento de Candido, uma delas, sem dúvida, o seu entranhado “modernocentrismo”, ou seja, o seu vezo em interpretar o passado literário nacional à luz do modernismo, em especial aquele surgido em 1922 no rastro da Semana de Arte Moderna.
Se, na visão do crítico, coube ao romantismo o papel histórico de criar uma literatura brasileira, graças às suas tendências particularistas, somente no modernismo tais tendências deixariam de lado certo aspecto “deformante” para adquirirem plena autenticidade artística. Ou, em outros termos, deixariam de lado o “pitoresco” dos românticos na busca de uma expressão que, ao invés de camuflar idealisticamente a realidade nacional, a assumisse de corpo e alma, com suas qualidades e defeitos. A diferença que distinguiria, muito didaticamente, personagens como Ceci e Peri, criadas por José de Alencar, do Macunaíma de Mário de Andrade.
Tratava-se, conforme resumiu certa vez o próprio Mário, de propor a “[…] estabilização de uma consciência criadora nacional”. Graças a essa postura, o modernismo significaria para Candido o fim da dialética que até então marcara a vida intelectual brasileira, pendente ora para os padrões estéticos universais, de origem europeia, ora para o dado local, isto é, a realidade nacional. Ao interiorizarem e refazerem, em moldes próprios, as pressões culturais advindas de fora, os modernistas teriam logrado a superação dessa dialética, condição fundamental para a criação de uma arte à altura da civilização que a engendrara.
Apesar de ser nacional e internacionalmente conhecido como um crítico literário, é curioso observar que Antonio Candido exerceu durante pouco tempo a chamada crítica de rodapé, aquela publicada na imprensa e voltada à análise de escritores contemporâneos. Isso só aconteceu entre 1941 e 1947, período no qual contribuiu para a revista Clima e os jornais Folha da Manhã e Diário de São Paulo. Mesmo assim, ao se deparar com as primeiras obras de Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto, Candido produziu textos importantes sobre esses autores, hoje reunidos no volume Brigada Ligeira e Outros Escritos (1992).
Após abandonar a crítica de rodapé, Candido se dedicaria exclusivamente ao ensino universitário e ao ensaísmo de cunho teórico-historiográfico, atividades que lhe granjearam um prestígio invulgar no panorama intelectual brasileiro e que culminaram na concessão a ele de dois dos mais importantes prêmios literários do universo ibero-americano: o Camões, em 1998, e o Afonso Reyes, em 2005.
Apesar disso, ou quiçá por causa disso, alguns departamentos de Letras espalhados pelo Brasil afora parecem demonstrar, tenho essa impressão, certa má vontade com relação à sua obra, não a inserindo, por exemplo, como referência bibliográfica em seus cursos de graduação e pós-graduação. Isso se deve, é possível aventar, a dois motivos: pelo fato de Antonio Candido jamais ter pagado tributo a alguns teóricos afinados com o discurso pós-moderno, cujo maior representante no campo literário seria, talvez, Roland Barthes; pelo fato de jamais ter escrito em francês e ter sido publicado pela Gallimard, o cúmulo do absurdo na visão do intelectual colonizado.
Para além das inúmeras influências estrangeiras que conformaram seu pensamento, como as obras de Roger Bastide e Georg Lukács, creio que as referências mais caras a Antonio Candido deveriam ser procuradas na própria literatura brasileira. Assim como o crítico afirma, em Formação, ser mais interessante interpretar o romance machadiano pela perspectiva de José de Alencar do que de um Laurence Sterne, por se surpreender certo determinismo literário agindo dentro do sistema, talvez fosse mais interessante interpretar a obra de Candido pela perspectiva de alguns antecessores seus, entre os quais Silvio Romero, José Veríssimo e Sérgio Milliet. Ou seja: antevendo no sistema, para além do determinismo literário (autores que geram outros autores), o determinismo crítico-historiográfico. Ler, absorver e reelaborar dialeticamente o trabalho deixado pelos literatos de outrora, eis a questão.
Não cabe aqui, claro, adentrar por tais veredas, mais apropriadas a uma tese de doutoramento. De todo modo, ao procurar se inserir numa tradição já existente de pensamento literário, sem se preocupar obsessivamente com a importação de teorias estrangeiras, Antonio Candido alcançou, em sua seara, o projeto idealizado pelos modernistas, inaugurando uma linhagem crítica e historiográfica até certo ponto autóctone, que pode e merece ser chamada de brasileira. Nossa dívida para com ele é, portanto, imensa, entre outros motivos por ter nos ensinado a pensar por conta própria.
por Rodrigo Morais
Para saber mais:
AGUIAR, Flávio (org.). Antonio Candido: Pensamento e Militância. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999.
BAPTISTA, Abel Barros. “O cânone como formação”. In: O livro Agreste. Campinas: Editora da Unicamp, 2005.
CAMPOS, Haroldo. O Sequestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira. São Paulo: Iluminuras, 2011.
COELHO, Ruy. Tempo de Clima. São Paulo: Perspectiva, 2002.
COUTINHO, Afrânio. “Formação da Literatura Brasileira”. In: Conceito de Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Pallas/MEC, 1959.
D’INCAO, Maria Angela e SCARABÔTOLO, Eloísa Faria (orgs.). Dentro do Texto, Dentro da Vida: Ensaios sobre Antonio Candido. São Paulo: Cia. das Letras, 1992.
DE LA SENA, Jorge Ruedas. História e Literatura: Homenagem a Antonio Candido. Campinas: Unicamp, 2003.
LAFER, Celso (org.). Esboço de Figura: Homenagem a Antonio Candido. São Paulo: Duas Cidades, 1979.
MARTINS, WILSON. A Crítica Literária no Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2002.
MORAES, Anita Martins Rodrigues. Para Além das Palavras: Representação e Realidade em Antonio Candido. São Paulo: Unesp, 2015.
MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da Cultura Brasileira (1933-1974). São Paulo: Ed. 34, 2008.
NUNES, Benedito. “Historiografia Literária do Brasil”. In: Crivo de Papel. São Paulo: Ática, 1998.
PEDROSA, Célia. Antonio Candido: A Palavra Empenhada. São Paulo: Edusp; Eduff, 1994.
PONTES, Heloísa. Destinos Mistos: Os Críticos do Grupo Clima em São Paulo (1940-1968). São Paulo: Cia. das Letras, 1998.
SÜSSEKIND, Flora. “Rodapés, Tratados e Ensaios – a Formação da Crítica Brasileira”. In: Papéis Colados. Rio de Janeiro: UFRJ, 1993.
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