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Depois de Georges Meliès, Chaplin, Fritz Lang, Eisenstein e o diabo, ninguém achava que o cinema podia ser mais do que já era. Nem precisava! O cinema já era a sétima arte, o auge da técnica, o movimento, “o ópio do povo” (com o perdão de Deus por destroná-lo da sentença de Marx). Foi preciso um destemido rapaz, sem juízo, sem noção do perigo, para realizar o filme listado por 99,99% dos entendidos de cinema e por 101% dos cineastas. Cidadão Kane: roteiro, direção, atuação e ousadia de Orson Welles.
O filme foi inovador desde os primeiros planos, ângulos, enquadramentos e movimentos. Tomadas de baixo para cima, de lado, de cima para baixo – Plongée, para os íntimos. Sucessão de planos e enquadramentos dentro de enquadramentos. Montagem não linear e edição polifônica. Linguagem cinematográfica em tudo que permitia a gramática das câmeras. Cidadão Kane reinventava a própria linguagem do cinema. Além disso, o próprio Orson Welles fazia o papel principal, do jovem ao velho Kane. Fazia tudo. Era demais para a cabeça dos pobres mortais medíocres. A inveja não permitia o perdão, cidadão.
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A Marca da Maldade, 1958
De genial também, depois veio A Marca da Maldade, com aquele plano sequência de abertura fazendo escola de novo. Câmera vai, câmera vem, segue a cena, passa em cima do prédio, foca no guarda e por aí vai. Era 1958 e o povo ainda não tinha assimilado o Citizen Kane por completo. Outro grande filme para causar inveja e enquadrar o plano. Entre os dois mais geniais de Welles, uma dúzia mais do bom cinema, sem dó nem perdão.
Antes disso, o menino encapetado, experimentando no teatro, muito jovem se destacou entre ideias e exageros geniais. Produziu peças com atores negros no auge da segregação americana, profanou Shakespeare em atualizações mundanas, rompeu palcos. Quando fez Cidadão Kane levando experimentações do teatro para o cinema, foi considerado o traidor dos puristas. O povo das coxias também não conseguiu perdoá-lo por isso.
Causou mesmo estragos imperdoáveis quando cobriu ao vivo uma invasão alienígena em tom jornalístico no rádio. Pânico geral, engarrafamento nas estradas, congestionamento das linhas telefônicas, saques a supermercados, caos urbano e desespero total. Era uma adaptação do clássico de ficção científica de H.G. Wells, A Guerra dos Mundos. O mesmo que virou filme ruim com o Tom Cruise e a Dakota Fanning em 2005. A adaptação anterior é de 1953, a reportagem de Orson Welles de 1938.
Odiado por décadas, sem o perdão dos que caíram no trote alienígena, ganhou notoriedade pelo feito. Até hoje é estudado como exemplo de teorias da comunicação nas faculdades hipodérmicas e nos modelos de Lasswell. Um caso Roswell de araque. Acabou contratado do estúdio com privilégios de criador sem amarras, carta branca para fazer o filme do Cidadão. Para não perder a rima, perdão: Lasswell, Roswell, Wells e Welles.
Mas ninguém lhe cultivou tanto ódio, sem sombra de perdão, como William Randolph Hearst, o magnata rancoroso. Inimigo mais poderoso entre os desafetos de Orson Welles, o riquinho rico das comunicações nos States foi a figura que inspirou o cineasta a fazer seu Charles Foster Kane, o tal Cidadão. Welles negou fogo e confirmação quando acusado por Hearst, irritado pela lã felpuda da carapuça que lhe serviu direitinho, no número e cor que lhe cabia. Mas todo mundo sabia de quem se tratava o Rosebud.
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Orson Welles e Rita Hayworth, A Dama de Shangai, 1948
Não foi perdoado também porque logo depois de causar no cinema, casou-se com Rita Hayworth, a mais bela flor que Nova York deu à Califórnia. Hollywood deu-a ao mundo. Orson Welles tomou-a para si. Safado! Era ele o cara que a colheu entre espinhosos arbustos de desejos mil. Todos a queriam, ele a teve. Imperdoável. Quando se separou dela alguns anos depois ninguém conseguiu perdoá-lo, de novo, por abrir mão dela. Vai entender.
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Orson Welles no carnaval do Rio de Janeiro, 1942
Também o Brasil não o perdoou pelo filme inacabado que deixou pra lá. Veio na leva ideológica da cultura americana nos anos 40. Papagaios e frutas na cabeça eram parte da leva, mas Orson Welles pretendia filmar aqui as jangadas do Nordeste, o carnaval do Rio, bundas e festas, aquele Brazil pueril. E filmou, é verdade, “É Tudo Verdade”, That’s All True. No fim da temporada de meses hospedado no Copacabana Palace, caipirinhas e samba, charutos cubanos, trechos rodados aqui e ali, o projeto naufragou e o sujeito foi embora levando a simpatia do colonizado. Era tudo lorota. O pseudodocumentário sedimentou no fundo da piscina do Copa, junto ao sofá que a lenda jogou pela janela num dia de fúria. Nem o concierge o perdoou.
Enfim, de gênio complicado e inteligente demais para ser normal, Orson Welles passou por períodos de ostracismo e bloqueio criativo, às vezes era empurrado para o limbo devido às brigas e desafetos com a indústria, mas sempre renascia dos acetatos com algum filme nas mangas. Depois de sua morte, em 85 aos 75, várias de suas latas abandonadas foram reeditadas e lançadas. Inclusive o filme brasileiro. Recentemente, na efeméride do centenário, o último filme emergiu do mito para o enquadramento do plano. Mas Orson Welles ainda não foi perdoado por reinventar o cinema e alterar o padrão. Nunca foi fácil ser cineasta depois dele. Imperdoável Orson.