O Poço é um espelho, óbvio.

por Matheus Arcaro

*Contém spoilers

 

O filme espanhol “O poço”, dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia, tem causado as mais diversas reações no público: desde asco profundo até a euforia de ver ali descrito um sistema opressor. A mim, causou perplexidade por vários aspectos.

Antes, porém, de ressaltar suas virtudes, gostaria de fazer três observações subjetivas: o filme não é tecnicamente primoroso; traz em seu bojo alguns clichês como, por exemplo, a ideia da simbolização vertical de grupos sociais e de um estado de natureza que vem à tona quando estamos num contexto hostil (pensemos em obras que já exploraram isso tais como O Senhor das Moscas e Ensaio Sobre a Cegueira) e trata de temas que poderiam ser mais sutilmente elaborados (as cenas explícitas de morte e canibalismo, por exemplo, soam como subterfúgios para chocar o espectador). Dito isso, vamos a um pequeno resumo do enredo e às qualidades da obra.

O protagonista escolhe participar por seis meses deste “experimento social” (que não por acaso tem o nome técnico de Gestão de Aprimoramento Pessoal) com o intuito de parar de fumar. Mas ele não conhece as regras de funcionamento do poço que, basicamente, é uma prisão vertical, com duas pessoas por cela. No centro, por um vão, desce a plataforma com um banquete. A plataforma fica poucos minutos em cada cela e os presos podem comer à vontade sem, contudo, guardar alimentos para mais tarde. Acontece que, se os andares de cima têm comida de sobra, conforme a plataforma vai descendo, os alimentos vão escasseando, a ponto de, nos últimos andares, o canibalismo ser frequente. Vale ressaltar que, a cada mês, os presos são aleatoriamente trocados de patamar: quem agora está no patamar 5, com fartura, no mês seguinte pode estar no 250, passando fome.

Cada “participante” tem o direito de levar um objeto para o poço. Qualquer objeto. Nosso “herói” leva um livro. E é ironizado por isso: “quem traz um livro para o poço?” pergunta seu primeiro colega de cela, que levou uma faca afiadíssima. Talvez aí se instaure a dicotomia entre civilização (livro) e barbárie (faca). Entretanto, os poucos instantes de prazer que eles tiveram (se é que podemos colocar assim) foi na leitura da obra de Cervantes. Isso me trouxe à mente uma frase do Nietzsche: “apenas a arte é capaz de transformar os horrores da existência em representações com as quais se torna possível sobreviver”. Pode parecer exagero, mas se pensarmos que, mais à frente no filme, ele literalmente come as páginas do livro para não morrer de fome, faz ainda mais sentido.

O ponto que salta aos olhos é que haveria comida para todos se cada um comesse apenas o necessário para seu sustento. Aqui surge uma grande questão filosófica: o ser humano é egoísta por natureza ou a situação é que o deixa assim?

Defendendo o primeiro ponto de vista, trago Hobbes, para quem nós somos inimigos naturais uns dos outros. Nossa natureza é cruel, vingativa, egoísta e ambiciosa, daí sua famosa frase “o homem é o lobo do próprio homem”. Para conter o ímpeto destrutivo dos seres humanos, Hobbes lança mão do Leviatã: apenas um estado autoritário seria capaz de tornar possível a convivência. Depois de presenciar por algum tempo os horrores do poço, o protagonista, contrariando a mulher que tentava racionar a comida para os presos de baixo, afirma: “não há solidariedade espontânea”.

Para defender o segundo ponto de vista, elejo Marx. Para ele, não existe natureza humana fixa, previamente dada. Ao contrário: o modo de o homem pensar, sentir, agir moralmente, fazer política e arte está condicionado ao modo de produção no qual está inserido. Ou seja, se estamos no sistema capitalista, que classifica a competição entre os homens como mola propulsora do progresso, os homens vão agir, pensar e sentir de acordo com os preceitos deste modo produtivo.

Mas há frestas, segundo Marx. É nestas frestas – que o filósofo chamou de consciência de classe – que o protagonista tenta se embrenhar. Quando ele resolve “corromper” o sistema (ele sabe que não pode fazê-lo sozinho, como Marx preconizou, e convoca seu amigo de cela para tanto) talvez ele não estivesse preparado para isso. Depois que eles recebem o conselho do sábio, que possivelmente é a introjeção da consciência de classe, as coisas começam a fluir. Só começam, porque novamente ganha força a frase do protagonista de que a cooperação talvez seja impossível aos moldes de um socialismo clássico. Ou melhor, de um socialismo antigo.

Eis que emerge a figura da criança. Ao chegar literalmente ao fundo do poço, o protagonista encontra uma menina, cuja mãe descia pela plataforma para “garantir” que algum alimento chegasse diariamente a ela. O último patamar é de número 333. Isso nos suscita duas possibilidades interpretativas. A primeira é que, como em cada patamar, há dois presos, a soma de presos seria 666, isto é, a “besta” seria o conjunto de homens nessa situação de horror. A segunda, cogita que o fundo do poço é a metade do caminho para a “besta”, porque quando a plataforma volta ao topo, o número zero é, ao mesmo tempo, o número 666, passando a mensagem de que a “besta” são os que “controlam” o sistema e, por isso, precisam ser derrotados.

Voltando à criança: aqui a simbologia é óbvia. Ela é a esperança, o futuro. Pensemos novamente em Nietzsche, nas três fases da “metamorfose do espírito”: a primeira é o camelo (obediência), a segunda é o leão (força) e a terceira é a criança. A criança é a possibilidade de romper a lógica do sistema. A criança é o enfrentamento estético da existência, é o “além-do-homem”. Quando Nietzsche propõe a teoria do além-do-homem, ele está nos dizendo que a mudança não viria de seus contemporâneos, nem dele mesmo, tanto que ele escreve sobre si: “há homens que nascem póstumos”. O protagonista apenas planta as sementes, sabendo que não colherá os frutos. Em suma: a criança é um sagrado dizer sim à vida, é o ser humano que cria sentidos, que transvalora os valores, que se enxerga como agente da história. É aqui que Nietzsche e Marx se abraçam.

Mas, talvez, tudo isso que escrevi sobre conflitos e superação não tenha passado de delírios do protagonista. Talvez ele tenha apenas idealizado situações até morrer no final, seguindo o exemplo de Dom Quixote, que travava batalhas contra moinhos de vento. Talvez.

Matheus Arcaro nasceu em Ribeirão Preto, onde vive atualmente. É mestrando em filosofia contemporânea pela Unicamp. Pós-graduado em História da Arte. Graduado em Filosofia e também em Comunicação Social. É professor, artista plástico, palestrante e escritor, autor do romance O lado imóvel do tempo (Ed. Patuá, 2016), os livros de contos Violeta velha e outras flores (Ed. Patuá, 2014) e Amortalha (Ed. Patuá, 2017) e do recém-lançado de poesia “um clitóris encostado na eternidade”. 

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