Já muito se falou sobre “Dois Papas”, filme de Fernando Meirelles. Não me aterei às questões já debatidas à exaustão como, por exemplo, a brilhante atuação de Anthony Hopkins e Jonathan Pryce ou os pontos de contato entre realidade e ficção na obra. As sendas nas quais pretendo penetrar a partir do filme são filosóficas.
Joseph Ratzinger e Jorge Bergoglio simbolizam duas vertentes da filosofia que remontam aos pré-socráticos e que, até hoje, tem ressonância no pensamento ocidental. Pelo menos na primeira metade do filme, Ratzinger representa a rigidez, enquanto Bergoglio representa a maleabilidade. Essa dicotomia é tão forte que fincou raízes no senso comum.
Ratzinger é um herdeiro de Parmênides, aquele que anuncia o ser, cujas características são a unidade, a eternidade, a imutabilidade, a perfeição. Bergoglio, um herdeiro de Heráclito, que defende o devir, a mudança incessante, o fluxo da vida. Um homem jamais entra duas vezes no mesmo rio, diz Heráclito, pois da segunda vez não é o mesmo rio, tampouco o mesmo homem.
À determinada altura, quando os dois papas debatem sobre assuntos polêmicos para a igreja como, por exemplo, a legalização do aborto ou o casamento homossexual, Ratzinger diz: “Deus nunca muda”. Essa noção é fundamental para entendermos algumas posições da Igreja. Peguemos como exemplo a questão do preservativo em relações sexuais. A Igreja ainda é contra seu uso por pura caretice? Não. Trata-se de uma questão conceitual. Está na Bíblia que o matrimônio é um dos sete sacramentos. A Bíblia é a palavra revelada pelo próprio Deus. Também está na Bíblia que sexo é permitido somente após o casamento. Ora, se a Igreja permitisse o uso de preservativo, indiretamente estaria permitindo que seus fiéis transassem antes do casamento e, por conseguinte, que a Bíblia não é o veículo da Verdade. Mas a verdade divina é necessariamente absoluta, eterna e imutável. Deus nunca muda.
Bergoglio acredita na possibilidade da mudança. Acredita que a Igreja não dialoga mais com as pessoas e, justamente por isso, está perdendo fiéis. Ademais, o homem que se tornaria Francisco adora futebol e não perde a oportunidade de contar uma piada. Neste ponto é inevitável a comparação com o livro de Umberto Eco, O nome da rosa, (que foi adaptado para o cinema) em que é proibida a leitura de uma obra apócrifa de Aristóteles sobre o riso. O riso é manifestação da face do demônio, dizem os monges. Homens de Deus não riem. Mas Bergoglio ri. E ri muito. Do outro lado, Ratzinger afirma que não sabe contar piadas. Ele sequer entende algumas brincadeiras verbais de Bergoglio.
Platão tentou solucionar o problema herdado dos pré-socráticos dividindo o mundo em duas realidades: grosso modo, o ser de Parmênides transformou-se no mundo das ideias (perfeito, uno, imutável) que é acessado pela razão e o devir de Heráclito tornou-se o mundo sensível (cópias imperfeitas, simulacros). Meirelles encontrou uma solução menos maniqueísta, construindo personagens complexas (em literatura chamamos tais personagens de esféricas), personagens que hesitam. Com o “convívio” dos dois papas, em certa medida, um captura a característica substancial do outro. Quando Ratzinger revela que vai renunciar ao papado, Bergoglio agarra-se ao dogma, afirmando que isso não pode acontecer, que Cristo não desceu da cruz e, portanto, um papa jamais renega sua missão. Ratzinger, por sua vez, explora timidamente a necessidade de mudança. Aliás, a própria decisão de renúncia é um ato revolucionário aos olhos da Igreja. No final, Ratzinger até ensaia uma piada.
Há, portanto uma dialética inscrita nestas vivências, em que a síntese é um grande aprendizado para ambos e, sobretudo, para o telespectador. Afinal, é possível juntar divindade e mobilidade como escreveu Nietzsche numa frase que já é célebre: “Eu acredito num deus que sabe dançar”.
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Matheus Arcaro nasceu em Ribeirão Preto, onde vive atualmente. É mestrando em filosofia contemporânea pela Unicamp. Pós-graduado em História da Arte. Graduado em Filosofia e também em Comunicação Social. É professor, artista plástico, palestrante e escritor, autor do romance O lado imóvel do tempo (Ed. Patuá, 2016), os livros de contos Violeta velha e outras flores (Ed. Patuá, 2014) e Amortalha (Ed. Patuá, 2017) e do recém-lançado de poesia “um clitóris encostado na eternidade”.
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