Alphaville: uma distopia em preto e branco na ótica de Jean-Luc Godard
por Rodrigo Morais Leite
“Todos os meus filmes têm começo, meio e fim,
mas não necessariamente nessa ordem.”
Jean-Luc Godard
Em 1965, Jean-Luc Godard, o maior cineasta do mundo em atividade, lançava uma de suas obras mais conhecidas: Alphaville, inusitada incursão do grande artista francês pelo gênero da ficção científica. Seu título, hoje conspurcado devido aos horrendos condomínios fechados que se estabeleceram por aí com esse nome, símbolos do apartheid social brasileiro, refere-se a uma cidade sombria, hostil e desumanizada, situada em um futuro qualquer, não se sabe onde, não se sabe quando. Produzido em preto e branco e quase todo rodado à noite, Alphaville apresenta da primeira à última cena uma concepção visual ousada, que sugere um universo radicalmente impessoal, com seus corredores e rampas desenhados no mais puro estilo moderno, de linhas retas e formas angulosas. A despeito dessa ausência de subjetividade ser uma das marcas de sua mise-en-scène, Alphaville foi inteiramente filmado em Paris, o que revela o uso no mínimo inusitado que Godard fez da “cidade luz” como cenário para seu nono filme de longa-metragem.
A atmosfera soturna e opressora de Alphaville não é gratuita, naturalmente, na medida em que ela tem papel preponderante na obra, conferindo-lhe, entre outros fatores, um explícito caráter distópico. E o que seria isso? Simples: uma utopia ao contrário, isto é, um não-lugar no qual o desenrolar do tempo, em vez de progresso, trouxe retrocesso moral. Trata-se, sem dúvida, de uma crítica contundente às ditas utopias modernas, em especial às de origem iluminista, prefiguradas a partir da seguinte noção: razão = progresso. Alphaville nos mostra que a razão humana, principalmente por meio de seu principal braço, a ciência, é capaz de transformar a vida do homem em um inferno. Sendo assim, o filme de Godard se insere numa tradição que remonta especialmente à literatura inglesa do século XX, pródiga no tratamento desse tema, como demonstram certos romances tais quais Admirável Mundo Novo (1932), de Aldouxs Huxley; 1984 (1949), de George Orwell; Fahrenheit 451 (1953), de Ray Bradbury; e Laranja Mecânica (1962), de Anthony Burgess. Curiosamente, todos foram adaptados para o cinema, com resultados que vão do medíocre (Admirável Mundo Novo) ao bom (1984 e Fahrenheit 451). Na seara da “sétima arte”, se se pode comparar, somente a adaptação feita por Stanley Kubrick em 1971 para Laranja Mecânica originaria um filme “distópico” à altura de Alphaville.
Além dessas referências literárias advindas da prosa, Alphaville também tem suas dívidas para com a poesia, mais especificamente em relação à obra Capital da Dor (1926), do francês Paul Éluard, citada em uma determinada passagem do filme. Isso sem contar outras alusões que extrapolam o universo da chamada “alta cultura”, como a trama de história em quadrinhos e a ambientação estilo film noir. Como, em 1965, Jean-Luc Godard ainda não havia rompido completamente com o cinema narrativo tradicional, Alphaville possui um enredo simples, quiçá banal, com começo, meio e fim (nesta exata ordem, é bom ressalvar). Assim se poderia resumi-lo: o agente secreto Lemmy Caution, vindo dos “países estrangeiros” e se passando por jornalista, tem a missão de adentrar em Alphaville para destruir o supercomputador Alpha 60, o controlador de tudo e de todos na cidade. A maneira como isso se efetiva na obra é simplesmente genial: o agente propõe um enigma à máquina, cuja resposta deveria ser o amor. Em tese, um computador jamais poderia decifrar um enigma relacionado a algo tão abstrato como o sentimento amoroso. Todavia, sua capacidade lógica se demonstra tão apurada que ele consegue. Ao fazê-lo, acaba se autodestruindo, irmanando-se, assim, à subjetividade humana. A mesma subjetividade que seus pressupostos ultrarracionalistas deveriam combater em prol de uma “sociedade técnica” supostamente perfeita.
No papel principal do filme foi escalado Eddie Constantine, ator cujo rosto, segundo a crítica de cinema Pauline Kael, seria “tão cansado e curtido que parece um sapato velho”. A seu lado, fazendo par romântico, está Anna Karina interpretando Natascha, um dos muitos seres autômatos de Alphaville. Deslumbrante de tão bela, Karina compõe com Constantine um dos casais mais discrepantes da história do cinema. Assimetrias à parte, na contramão de um autêntico thriller, Alphaville se dá ao luxo de ter final feliz. Basta dizer que a cena derradeira da obra, filmada dentro de um carro em movimento, no instante em que o herói salva a mocinha das invisíveis garras de Alpha 60, é marcada pela seguinte fala de Natascha, por meio da qual ela se salva em definitivo: Je vous aime (Eu amo você). Melhor que novela das nove. Pode acreditar.
Por Rodrigo Morais
Coluna Cinema