Na ponta da língua: meia dúzia de grandes poetas em língua portuguesa

por Homero Nunes
Manuel Bandeira (1886-1968)

O BICHO
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.


Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

MÃOS DADAS
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considere a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.
Não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela.
Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida.
Não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.


Augusto dos Anjos (1884-1914)
PSICOLOGIA DE UM VENCIDO
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundíssimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância…
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!


Cecília Meireles (1901-1964)
RETRATO
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida a minha face?


Ariano Suassuna (1927 –    )
Eu vi a Morte, a moça Caetana,
com o Manto negro, rubro e amarelo.
Vi o inocente olhar, puro e perverso, 
e os dentes de Coral da desumana.

Eu vi o Estrago, o bote, o ardor cruel, 
os peitos fascinantes e esquisitos. 
Na mão direita, a Cobra cascavel, 
e na esquerda a Coral, rubi maldito.

Na fronte, uma coroa e o Gavião. 
Nas espáduas, as Asas deslumbrantes 
que, rufiando nas pedras do Sertão,

pairavam sobre Urtigas causticantes, 
caules de prata, espinhos estrelados 
e os cachos do meu Sangue iluminado.


Ferreira Gullar (1930 –    )

Uma parte de mim 
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Hors Concours:
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