Arapuca literária! Os melhores inícios de livros em meia dúzia de capturas e arrebates
por Isso Compensa
“Todas as famílias felizes se parecem,
cada família infeliz é infeliz à sua maneira.”
Frase de abertura de Anna Karienina, de Tosltoi
Há livros que exigem a insistência, por importantes que são. Fazem a captura do leitor pela reputação, por mais difícil, por maior que seja a resistência a ser quebrada. Não há como fugir deles e da tarefa que impõem a muitos de nós. Literatura obrigatória. Outros, no extremo oposto, nos pegam pelo título, pela capa, pela indicação de qualquer um. Literatura de banheiro. Há, contudo, um tipo de livro que nos captura pela curiosidade, pela abertura das palavras e da cabeça, pelo início bem escrito que nos segura e arrebata. Verdadeiras arapucas literárias. Abaixo uma listinha de meia dúzia de inícios de livros que são armadilhas para o leitor.
Deixe-se capturar e, por favor, se tiver algum início de livro que também considere uma arapuca, no bom sentido, contribua nos comentários.
A METAMORFOSE
Franz Kafka, 1915
“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos.
― O que aconteceu comigo? — pensou.
Não era um sonho. Seu quarto, um autêntico quarto humano, só que um pouco pequeno demais, permanecia calmo entre as quatro paredes bem conhecidas…”
KAFKA, Franz. A Metamorfose. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
Tradução de Modesto Carone.
MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS
Machado de Assis, 1880
“Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo; diferença radical entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia — peneirava — uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste…”
Machado de Assis. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 1880.
O VELHO E O MAR
Ernest Hemingway, 1952
“Era um velho que pescava sozinho em seu barco, na Gulf Stream. Havia oitenta e quatro dias que não apanhava nenhum peixe. Nos primeiros quarenta, levara em sua companhia um garoto para auxiliá-lo. Depois disso, os pais do garoto, convencidos de que o velho se tornara salao, isto é, um azarento da pior espécie, puseram o filho para trabalhar noutro barco, que trouxera três bons peixes em apenas uma semana. O garoto ficava triste ao ver o velho regressar todos os dias com a embarcação vazia e ia sempre ajuda-lo a carregar os rolos de linha, ou o gancho e o arpão, ou ainda a vela que estava enrolada à volta do mastro. A vela fora remendada em vários pontos com velhos sacos de farinha e, assim enrolada, parecia a bandeira de uma derrota permanente.
“Era um velho que pescava sozinho em seu barco, na Gulf Stream. Havia oitenta e quatro dias que não apanhava nenhum peixe. Nos primeiros quarenta, levara em sua companhia um garoto para auxiliá-lo. Depois disso, os pais do garoto, convencidos de que o velho se tornara salao, isto é, um azarento da pior espécie, puseram o filho para trabalhar noutro barco, que trouxera três bons peixes em apenas uma semana. O garoto ficava triste ao ver o velho regressar todos os dias com a embarcação vazia e ia sempre ajuda-lo a carregar os rolos de linha, ou o gancho e o arpão, ou ainda a vela que estava enrolada à volta do mastro. A vela fora remendada em vários pontos com velhos sacos de farinha e, assim enrolada, parecia a bandeira de uma derrota permanente.
O velho pescador era magro e seco, e tinha a parte posterior do pescoço vincada de profundas rugas. As manchas escuras que os raios de sol produzem sempre, nos mares tropicais, enchiam-lhe o rosto, estendendo-se ao longo dos braços, e suas mãos estavam cobertas de cicatrizes fundas, causadas pela fricção das linhas ásperas enganchadas em pesados e enormes peixes. Mas nenhuma destas cicatrizes era recente…”
HEMINGWAY, Ernest. O Velho e o Mar. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013. Tradução de Fernando de Castro Ferro.
O EGÍPCIO
Mika Waltari, 1945
“Eu Sinuhe, filho de Senmut e de sua mulher Kipa escrevo isto. Não o escrevo para a glória dos deuses da terra de Kan, porque estou cansado de deuses, nem para a glória dos faraós porque estou cansado de seus feitos. Tampouco escrevo por medo ou por qualquer esperança no futuro; escrevo para mim, apenas. O que vi, conheci e perdi durante a minha vida, foi coisa demasiada para que me domine um vão temor e, quanto a algum desejo de imortalidade, estou tão exausto disso quanto dos deuses e dos reis. É apenas por minha causa que escrevo, por tal motivo e essência diferindo eu de todos os escritores passados e vindouros.
Principio este livro no terceiro ano do meu exílio, nas praias do mar Oriental de onde os navios saem para as terras do Ponto; aqui, perto do deserto, junto àquelas colinas cuja pedra foi retirada para a construção das estátuas dos primitivos deuses. Escrevo porque já agora o vinho é amargo para a minha boca, porque perdi o prazer que achava nas mulheres e porque nem jardins nem lagos com peixes me distraem mais. Expulsei os cantores, pois o som proveniente de sopro ou de cordas é tormento para os meus ouvidos. Por conseguinte eu, Sinuhe, escrevo isto já que não me importo…”
WALTARI, Mika. O Egípcio. São Paulo: Editora Brasileira, 1964.
Tradução de José Geraldo Vieira.
LOLITA
Vladimir Nabokov, 1955
“Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta.
Pela manhã ela era Lô, não mais que Lô, com seu metro e quarenta e sete de altura e calçando uma única meia soquete. Era Lola ao vestir os jeans desbotados. Era Dolly na escola. Era Dolores sobre a linha pontilhada. Mas em meus braços sempre foi Lolita.
Será que teve uma precursora? Sim, de fato teve. Na verdade, talvez jamais teria existido uma Lolita se, em certo verão, eu não houvesse amado uma menina primordial. Num principado à beira-mar. Quando foi isso? Cerca de tantos anos antes de Lolita haver nascido quantos eu tinha naquele verão. Ninguém melhor do que um assassino para exibir um estilo floreado. Senhoras e senhores membros do júri, o item número um da acusação é aquilo que invejavam os serafins – os desinformados e simplórios serafins de nobres asas. Vejam este emaranhado de espinhos.
NABOKOV, Vladimir. Lolita. São Paulo: Biblioteca Folha, 2003.
Tradução de Jorio Dauster.
MEDO E DELÍRIO EM LAS VEGAS
Hunter Thompson, 1971
“Estávamos em algum lugar perto de Barstow, à beira do deserto, quando as drogas começaram a fazer efeito. Lembro que falei algo como “estou meio tonto; acho melhor você dirigir…” E de repente fomos cercados por um rugido terrível e o céu se encheu de algo que pareciam morcegos imensos, descendo, guinchando e mergulhando ao redor do carro, que avançava até Las Vegas a uns 160 por hora, com a capota abaixada. E uma voz gritava: “Jesus Santíssimo! Que diabo são esses bichos?”
Então o silêncio voltou. Meu advogado tinha tirado a camisa e estava derramando cerveja no peito para facilitar o processo de bronzeamento. “Por que você tá gritando, porra?”, resmungou, olhando para o sol com os olhos fechados e protegidos por óculos escuros espanhóis que se ajustavam à cabeça. “Deixa pra lá”, respondi. “É sua vez de dirigir.” Pisei no freio e conduzi o Grande Tubarão Vermelho até o acostamento da rodovia. Melhor nem citar os morcegos, pensei. Não ia demorar para que o infeliz também os visse.
Era quase meio-dia e ainda tínhamos cerca de duzentos quilômetros pela frente. Seriam quilômetros difíceis. Eu sabia que muito em breve nós estaríamos completamente alucinados. Mas não havia mais volta, nem tempo para descansar. Precisávamos seguir em frente…”
THOMPSON, Hunter S. Medo e delírio em Las Vegas: uma jornada selvagem ao coração do Sonho Americano. São Paulo: LP&M, 2010.
Tradução Danil Pellizzari e Ilustrações de Ralph Steadman.
Colunas: Literatura & Meia Dúzia
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