“Não se deve temer a morte, mas, sim, a vida! Pois é em vida que enfrentamos a exclusão social, a violência, fome e solidão. Por isso reverenciamos a morte”. A explicação veio do senhor mexicano ao embalar duas caveiras de resina que eu acabara de comprar na zona arqueológica de Teotihuacan, a 48 km da Cidade do México. Prolongo a conversa sobre vida e morte para aproveitar o ar condicionado da lojinha de suvenir.
Visitar esse sítio que foi uma das maiores cidades do mundo antigo exige bastante preparo físico. A rua dos mortos tem uma extensão de quatro quilômetros. Cruza o centro e está cercada do que sobrou dos templos, edifícios e pirâmides. A mais imponente é a pirâmide do sol, com 260 degraus. Não é à toa que os astecas ficaram impressionados quando descobriram essa antiga civilização. Nomearam-na “a cidade dos deuses’’.
O dono da loja insiste para que eu também leve uma faca de pedra obsidiana, um dos símbolos do império teotihuacano. Reluto um pouco, mas compro. Fez um bom desconto. Ao pagar, pensava no altar situado ali perto onde os sacrifícios aconteciam. Era com a ponta afiada da obsidiana que arrancavam corações de jovens em busca de purificação e virtude. Ao sair da loja comecei a pensar que a relação entre morte e vida para o povo mexicano está além das mazelas humanas.
Entro no ônibus de volta para a capital. Meu destino é também o coração, mas da Cidade do México – o Zócalo. Apesar de cheio, o vagão do metrô tem um silêncio enigmático. Rostos indígenas de olhos anuviados por certa tristeza. A ancestralidade está impregnada em tudo que vejo. Uma moça acomoda a filha no colo. Abre um pacote de salgadinho e derrama molho de pimenta. Comem e se distraem com um mapa da linha do metrô acima da janela. Cada estação tem um símbolo que representa a região. Um coiote para a estação Coyoacán, bairro onde Frida Kahlo e Diego Rivera viveram. Ajuda quem não sabe ler. Não me parece ser o caso da moça que continua molhando o salgadinho com pimenta. Não me surpreende. Até no sorvete eles usam pimenta em pó.
O sol arde na Praça da Constituição, uma das maiores do planeta. Três mundos coexistem nesse lugar. Edifícios coloniais, restos arqueológicos e a arquitetura moderna. Atravesso a praça com passos lentos. Sob os meus pés jazem os cadáveres de Tenochtitlan, capital da antiga civilização asteca antes de ela ser arrasada por Hernán Cortéz e seus soldados. Uma turista passa por mim com uma camisa da bandeira do México. Uma manga verde e a outra vermelha. No centro branco, uma águia sobre um pé de cacto segurando uma cobra no bico. Segundo a lenda, essa imagem seria de 1325, quando a tribo asteca, ou mexicas, como eram conhecidos, procuravam um lugar para se fixar. De acordo com as instruções do deus da guerra, haveriam de edificar sua cidade no local onde se deparassem com a cena estampada na camisa da turista. Foi nesses arredores onde estou pisando que se deu tal acontecimento.
Os astecas foram os últimos aborígenes a chegar nesse vale. Edificaram uma cidade sob o lago Texcoco. Exímios arquitetos, implementaram as chinampas, que são jardins flutuantes formados por árvores e gramas. Serviam para plantação de alimentos. Com o passar do tempo, construiriam diques para controlar o nível da água. Depois, com pedras e madeiras, fortaleceram o solo para edificar a metrópole do império que chegou a possuir quase 300 mil habitantes. Isso tudo sem o conhecimento da roda e da tração animal.
Atualmente, a Cidade do México conta com 9 milhões de pessoas. A impressão que tenho é de que a maioria está aqui hoje na praça. Para me esquivar do sol, entro na catedral metropolitana, uma das mais antigas da América. Deparo-me com um Cristo negro. Curioso como as imagens de Cristo no México possuem diferentes cores e geralmente são excessivamente dramatizadas, valorizando ao máximo sua dor e sofrimento no açoite. O barroco mexicano me parece mais intenso.
Por sinal, em Cholula, conheci duas igrejas que considero as mais lindas em que já estive: Santa Maria Tonatzintla e a de San Francisco de Acatepec, esta última com a mesma idade do Brasil. Os artesãos eram os índios e eles não pouparam os santos, os anjos e até o próprio Cristo de ter uma fisionomia indígena. Toda decoração é inspirada nos alimentos e flores da natureza mexicana. Se a tentativa dos espanhóis era sobrepor a cultura dos índios, sucedeu-se o contrário.
Ao sair da catedral metropolitana me deparo com outra imagem típica do México: as flores. O menino que as vende traz dezenas em carrinho de pedreiro. Cores que causariam inveja a qualquer palheta fauvista. Registro as matizes na lente de minha câmera.
O dia cai. Ainda há tempo para conhecer gravuras de Guadalupe Posada, o precursor das famosas “calaveras’’ (caveiras), tão difundidas na cultura mexicana. Sua obra é de um humor ácido e crítico do drama social que vivia o México no início do século XX quando estourou a revolução de 1910. Posada exerceu grande influência nos pintores muralistas. Na mesma galeria tenho a sorte de visitar obras da artista Remedios Varo. Telas surrealistas onde os sonhos rompem os limites da moldura.
A noite adentra o céu da Cidade do México. O calor ainda intenso. Encontro um bar com cadeiras e mesas na calçada. Peço uma cerveja da marca Indio. Viro o primeiro copo. Já no segundo, pinto em pensamento um mural de imagens com as reminiscências do meu dia. Certamente estou no lugar certo para uma antropofagia cultural.
por Juliano Mignacca
Imagem de capa: detalhe do mural de Diego Rivera, “Sueño de una tarde dominical en la Alameda” (1947)
Coluna: Urbi et Orbi