Tudo o que você sempre quis saber sobre Zé Celso, mas tinha medo de perguntar

por Rodrigo Morais Leite

Uma festa dionisíaca tomou o teatro Oficina para o velório de José Celso Martinez Corrêa, falecido em 6 de julho de 2023, vítima de graves queimaduras ocasionadas por um incêndio em seu apartamento. Ator, cineasta, dramaturgo e, principalmente, encenador, sua morte pôs um fim à trajetória mais visceral de que se tem notícia na história do teatro brasileiro. Semelhante noção, apesar de subjetiva, sobreveio com força na hora derradeira, fazendo dela uma ocasião propícia para a elaboração de um perfil justo do artista em questão, com vistas a alcançar, quem sabe, uma “unidade satisfatória”.

Conforme amplamente divulgado, Zé Celso nasceu em Araraquara, interior de São Paulo, no dia 30 de março de 1937. Com dezoito anos, mudou-se para São Paulo, ao ingressar na cobiçada Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, pertencente à USP. Foi lá, juntamente com outros três estudantes (Amir Haddad, Renato Borghi e Carlos Queiroz Telles), que ele fundou, em 1958, o grupo de teatro que, posteriormente, ganharia o nome de Oficina.

Em seus três primeiros anos de existência, o Oficina manteve-se como um grupo amador, fator que não o impediu de realizar alguns espetáculos significativos, com ou sem a direção de Zé Celso. Isso porque, em seus primórdios, o artista paulista procurou se destacar não como encenador, ofício que de fato o consagraria, mas como dramaturgo. São de sua autoria duas peças montadas na fase amadorística: Vento Forte para Papagaio Subir e A Incubadeira. Contudo, cabe acrescentar, ambas estrearam sob a direção de Amir Haddad, que desde o primeiro momento se mostrara mais interessado pela encenação – arte que, afinal de contas, também o consagraria, embora fora do Oficina. Tais peças compõem uma tríade designada “ciclo Araraquara”, à qual se incluiria, ainda, Cadeiras na Calçada, jamais encenada.

A primeira direção de Zé Celso, feita a contragosto, foi de uma pequena peça chamada Geny no Pomar, de Charles Thomas, que deveria servir para completar um programa maior, composto de outros dois textos (Antônio e O Guichê), montados, respectivamente, por Celso Paulino e Carlos Queiroz Telles.

Outra curiosidade digna de nota: se, com o passar dos anos, o Teatro Oficina se destacaria como o principal “rival” (com muitas aspas) do Teatro de Arena, em sua fase amadora, ele se mostrou bastante ligado ao grupo sediado na rua Teodoro Baima. Sobre a relação do Oficina com o Arena, é bom lembrar que, em 1960, os dois grupos coproduziram Fogo-Frio, de Benedito Ruy Barbosa, com direção de Augusto Boal. Este orientou curso de interpretação no Oficina e lá dirigiu, ainda por cima, outros dois espetáculos (A Engrenagem e Um Bonde Chamado Desejo).

Renato Borghi em cena de “A Incubadeira”. Teatro de Arena, São Paulo, 1959.

E por que, apesar de manter relações tão próximas com o Teatro de Arena, os dois grupos, no fim das contas, não se fundiram, como tudo levava a crer e como houvera acontecido, outrora, com o Teatro Paulista do Estudante, absorvido pelo Arena em 1957? Antes de tudo, por questões de cunho político-ideológico. Diferentemente da companhia liderada por Augusto Boal e José Renato, o Oficina pouca ou nenhuma afinidade tinha com a esquerda marxista. Àquela época, sua principal influência intelectual remetia ao pensamento existencialista, representado, notadamente, pela obra de Jean-Paul Sartre. Do famoso filósofo e escritor francês, o Teatro Oficina montou, ainda no período amadorístico, a peça As Moscas e a já mencionada A Engrenagem, adaptação para o teatro feita por Zé Celso e Augusto Boal a partir de um roteiro cinematográfico elaborado por Sartre.

A Profissionalização

 Em 1961, não sem algumas hesitações, o Oficina resolveu se profissionalizar, adotando o nome de Companhia de Teatro Oficina Ltda e tendo como sócios, além de Zé Celso, Renato Borghi, Ron Daniels, Paulo de Tarso e Jairo Arco e Flexa. É nesse momento que a figura do grande encenador começa a despontar, ao dirigir a peça A Vida Impressa em Dólar, de Clifford Odets. De acordo com Décio de Almeida Prado, o mais prestigiado crítico teatral de então, Zé Celso estreara (profissionalmente) na direção “como um mestre, suficientemente seguro de seus efeitos para não abusar de nenhum deles”.

O trabalho seguinte (Todo Anjo é Terrível, adaptação do romance de Thomas Wolfe), acabou resultando, contudo, num enorme fracasso, que deixou a companhia da rua Jaceguai em maus lençóis. Superadas as dificuldades financeiras decorrentes desse insucesso, em 1963 o Oficina estreava a sua primeira obra-prima: a montagem, a cargo de Zé Celso, de Pequenos Burgueses, do dramaturgo russo Máximo Gorki.

Nela, o jovem encenador, amparado pela direção de atores e atrizes assinada por Eugênio Kusnet, elevaria à máxima potência a poética stanislavskiana. Não por acaso, na visão de Sábato Magaldi, outro crítico da maior relevância, Pequenos Burgueses teria sido o melhor espetáculo realista produzido no Brasil. Como já havia acontecido com A Vida Impressa em Dólar, Pequenos Burgueses também teve problemas com a censura, que, no seu caso, se fez presente logo após a instauração do golpe civil-militar de primeiro de abril de 1964. Interditado pelo novo regime, o espetáculo só retornou ao cartaz do Teatro Oficina após uma batalha judicial e o pagamento de um valor considerável em dinheiro aos órgãos repressores.

Ítala Nandi e Fernando Peixoto em “Os Pequenos Burgueses”. Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp

A essa primeira obra-prima, que mereceria muitos comentários à parte, sucederam-se duas montagens classificadas pela crítica especializada como híbridas, por comportarem, simultaneamente, a poética de Stanislavski, em via de ser “superada” pelo grupo, e a poética de Bertolt Brecht, cada vez mais presente, àquela altura (1965-66), nos palcos brasileiros. Seriam elas: Andorra, de Max Frisch; e Os Inimigos, de Máximo Gorki. É quando, no intuito de conhecer o teatro brechtiano em sua fonte, Zé Celso, juntamente com Renato Borghi, viajou para Berlim, onde tomaria contato, é claro, com o Berliner Ensemble, a emblemática companhia fundada por Brecht e Helene Weigel.

No dia 31 de março de 1966, um incêndio destruiu o edifício onde o Oficina se mantinha, utilizado pelo grupo desde a sua fundação, inicialmente alugado de uma associação espírita para depois, num segundo momento, ser adquirido de vez. Para se manter enquanto a nova sede era reerguida, o Oficina foi para o Rio de Janeiro, onde apresentou uma mostra de repertório composta de três espetáculos: Pequenos Burgueses, Andorra e Quatro num Quarto. Nos momentos de ócio, foram organizados cursos especiais para o elenco, ministrados por Leandro Konder (“Filosofia e Pensamento Cultural”) e Luiz Carlos Maciel (“Interpretação Social”). Do último veio a ideia de promover uma leitura coletiva de O Rei da Vela, peça de Oswald de Andrade publicada em 1937 que jamais havia sido montada.

José Celso nas ruínas do Teatro Oficina em 1966.

Até aquele momento, desde sua profissionalização, o Oficina só encenara dois textos de autores brasileiros (José, do Parto à Sepultura, de Augusto Boal, e Toda Donzela Tem um Pai Que É uma Fera, de Gláucio Gil). Nenhuma dessas montagens, diga-se de passagem, teve direção de José Celso. De todo modo, conforme afirma o pesquisador Armando Sérgio da Silva, os cursos acabaram despertando no grupo um clima geral de insatisfação com o seu passado, principalmente no que concerne ao cosmopolitismo do seu repertório, do ponto de vista dramatúrgico e cênico. Com efeito, “[…] sentiu-se a necessidade premente de se estudar a ‘cultura brasileira’, de se encontrar o homem brasileiro e o seu meio geográfico, social e político”.

Quando Luiz Carlos Maciel indicou para os integrantes do Oficina a leitura de O Rei da Vela, peça que eles já conheciam, houve de início certa desconfiança, em razão de alguns considerarem o texto oswaldiano a manifestação de um vanguardismo ultrapassado. Segundo o testemunho de Fernando Peixoto, essa opinião mudou, literalmente, da noite para o dia, quando, num apartamento em Ipanema, Renato Borghi leu o texto na íntegra em voz alta, convencendo a todos e todas da necessidade de sua encenação naquele momento histórico pelo qual o Brasil passava.

Estreado em setembro de 1967, com o propósito de inaugurar o novo edifício teatral construído pelo grupo, O Rei da Vela obteve um sucesso arrebatador, de público e crítica, algo relativamente raro de se ver no teatro – ao menos em proporções hiperbólicas, como foi o caso. Antes dele, é possível afirmar, no âmbito do teatro brasileiro moderno, somente Vestido de Noiva, em 1943, e Eles Não Usam Black-tie, em 1958, haviam alcançado tamanho impacto e repercussão no meio cultural.

Ítala Nandi no papel de Heloísa de Lesbos em “O Rei da Vela” (1967). Foto: Freedi Kleemann

E devido a que fatores o espetáculo teria impressionado tanto? Entre outros motivos, porque nele se anteviu, de maneira latente, uma tendência que, a partir de então, se tornaria cada vez mais poderosa: a autonomização da cena em relação à dramaturgia. Se, em anos anteriores, o trabalho de encenação, conforme prescreviam as normas em vigor, deveria se ater substancialmente ao texto, tomando-o como uma unidade sobrecodificadora a partir da qual todos os enunciados deveriam emanar, com José Celso ela adquiriria um novo status. A escritura cênica, para usar o linguajar da época, proposta por ele em O Rei da Vela, não se contentava “apenas” em servir ao texto, pois ousava, sem pejo, ir muito além dele, criando significados próprios que muitas vezes se sobrepunham aos da matriz literária.

Embora semelhante autonomização da cena tenha se revelado em trabalhos anteriores a O Rei da Vela, como o próprio Zé Celso admitia, levados a cabo por nomes como Paulo Afonso Grisolli e Antônio Abujamra, naquela montagem ela teria atingido uma dimensão mais ressaltada, responsável pelo início, no Brasil, de um verdadeiro “teatro de encenador”. Valendo-se, basicamente, da mesma pesquisa empreendida com a peça de Oswald de Andrade, acrescentada, agora, de elementos artaudianos, Zé Celso voltou à carga, em 1968, com mais um espetáculo antológico, agora fora do Teatro Oficina: Roda Viva.

Partindo da peça de Chico Buarque de Holanda, o encenador criou uma obra cênica bastante radical para os decorosos padrões de comportamento da época. A fúria antiburguesa de Zé Celso, que já se manifestara em O Rei da Vela por meio de impropérios dirigidos à plateia, era agora levada adiante de maneira ainda mais radical. Em lugar da ofensa verbal, o público era abertamente afrontado, entre outras coisas, por pedaços de fígado que voavam do palco.

A esse novo comportamento cênico, que Zé Celso intitulou de “teatro agressivo”, se percebe uma leitura ainda superficial do pensamento de Antonin Artaud, sintetizado na expressão “teatro da crueldade”. De todo modo, até hoje, passados tantos e tantos anos, ainda se ouve ou se lê que Roda Vida, devido à virulência de sua mise-en-scène, teria sido responsável por um suposto afastamento do público nos teatros, verificado em anos vindouros.

Roda Viva também é hoje muito lembrado, sem dúvida tristemente, devido ao ataque sofrido pelo elenco do espetáculo quando este cumpria temporada no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo. Em 18 de julho de 1968, militantes do CCC (Comando de Caça aos Comunistas) ocuparam o teatro, localizado na rua dos Ingleses, e agrediram, com socos e pauladas, vários/as integrantes de Roda Viva. Embora exista a suspeita de que os milicianos tinham como alvo o elenco de outra produção em cartaz no mesmo local (1ª Feira Paulista de Opinião, do Teatro de Arena), o atentado por eles perpetrado não deixa de ser um sinal do quanto o “teatro agressivo” de Zé Celso incomodava a extrema-direita, notadamente pelo seu aspecto comportamental, ligado à contracultura. A esse respeito, basta informar que, pouco depois, ocorreria um novo ataque, na cidade de Porto Alegre.

O Coro de “Galileu Galilei”. Teatro Oficina, 1968.

No Oficina, após as bem sucedidas experiências brechtianas encampadas por Zé Celso na concepção cênica de O Rei da Vela, ligadas à gesticulação dos atores e atrizes, era hora de adentrar ainda mais fundo no território do teatro épico-dialético, levando à cena uma peça do próprio Bertolt Brecht. Com o acirramento do regime de exceção, cada vez mais arbitrário e violento, optou-se por uma obra que servisse como uma parábola do Brasil da época, caminhando a passos largos rumo ao mais completo obscurantismo político.

O texto escolhido não poderia ser outro: A Vida de Galileu, montada pelo grupo com o nome de Galileu Galilei. O dia da estreia, sucedida com a presença de censores na plateia, se deu em 13 de dezembro de 1968. Ou seja: no dia da promulgação do Ato Institucional Nº 5, o famigerado AI-5. Por seu aspecto simbólico de resistência, tornar-se-á praxe no Teatro Oficina, a partir de então, estrear seus espetáculos sempre no mesmo dia do ano.

Galileu Galilei, outra obra elogiadíssima em virtude da excelência de sua encenação, milimetricamente marcada, trazia, dentro de si, o germe daquilo que o Oficina se tornaria no futuro. Ainda que, no todo, a montagem se revelasse de um racionalismo quase cartesiano, a serviço do didatismo brechtiano, na parte final, passada durante o carnaval de Veneza, a entonação se alterava por completo, no sentido de ensejar uma grande celebração com os/as espectadores, obviamente vazava do palco para a plateia.

 Nesse trabalho, de maneira um tanto premeditada por parte da direção, ocorreu uma curiosa divisão no elenco. De um lado, os pejorativamente denominados de “representativos”, que desempenhavam os principais papéis do espetáculo; de outro, os autodenominados de “marginália”, basicamente composto de figurantes remanescentes de Roda Viva que despontavam na hora do coro carnavalesco. Instaurava-se, assim, dentro de uma mesma obra cênica, duas correntes estéticas opostas em suas respectivas visões de mundo: uma racionalista e a outra, claro, irracionalista. À medida que a temporada de Galileu Galilei transcorria, a segunda parte foi adquirindo, paulatinamente, cada vez mais espaço dentro do espetáculo.

Na visão de Fernando Peixoto, legítimo integrante do grupo dos “representativos”, “o trabalho de José Celso foi extremamente consciente, meticuloso e, contra seu ímpeto, amadurecido. Mas ele acabou privilegiando, enquanto posicionamento, a cena do carnaval, instante certamente decisivo do texto de Brecht, mas que na versão do Oficina recebeu um tratamento cênico inesperado e, em relação ao resto do espetáculo, contraditório. Para ele, o espetáculo nascia negado, castrado. Na cena, a ciência chega ao povo. No espetáculo, a ciência era substituída por um ritual mágico-militarista, desenvolvido a partir do ‘coro’ de Roda Viva e embrião da tentativa de elaboração de um teatro irracional e sensorial que, vencido o período reprimido, atingirá seu ponto culminante em Gracias, Señor”.

Todavia, entre Galileu Galilei e Gracias, Senõr, ainda haveria tempo para a concepção de um outro espetáculo marcante, que procurou, a seu modo, conciliar, num mesmo empreendimento, os “representativos” e a “marginalia”: Na Selva das Cidades, de 1969. Novamente uma peça de Bertolt Brecht vinha à tona, porém, dessa vez, uma peça sui generis do dramaturgo alemão, que pouco ou nada tem a ver com as propostas do teatro dialético, a ponto de Martin Esslin, autor de O Teatro do Absurdo, incluí-la na categoria de obra absurdista, o que significa dizer: de viés ostensivamente irracionalista.  

Para essa direção, Zé Celso serviu-se de algumas ideias e conceitos originários do pensamento de Jerzy Grotowski, outra figura exponencial do teatro moderno, assim como Stanislavski, Brecht e Artaud. Por mais que se possa objetar, e com razão, tratar-se de uma absorção livresca da poética grotowskiana, baseada apenas na leitura de suas teorias e de seus famosos exercícios corporais, não deixa de ser notável o fato de que, em um espaço de mais ou menos sete anos, o Oficina ter transitado pela estética de quatro dos principais “papas” da modernidade teatral.

Esther Góes, José Celso e Renato Borghi em cena do espetáculo “Gracias, Señor” (1972). Acervo Arquivo Nacional

Em Na Selva das Cidades, Zé Celso valia-se da peça de Brecht para propor, em sua encenação, uma revisão da história do próprio Teatro Oficina, às voltas com um impasse que ameaçava implodi-lo: seguir pelas veredas de um teatro politicamente militante, que em última instância colocava na mesa a opção pela luta armada no combate à ditadura civil-militar; ou por aquilo que Zé Celso designou de “estética do desbunde”, mais voltada para uma emancipação de tipo individual. A escolha, hoje se sabe, foi pela segunda alternativa, que se tornará, ao longo dos anos, a marca indelével do diretor e de seu grupo.

 É nesse momento, após o término da (curta) temporada cumprida por Na Selva das Cidades, que o Oficina tomou contato com Julian Beck e Judith Malina, casal fundador do Living Theatre, coletivo teatral estadunidense pioneiro na materialização dos ideais artaudianos, a partir dos quais adquiriram prestígio internacional. Embora a tentativa de uma possível parceria entre os dois grupos não tenha resultado em nada de concreto, por razões diversas, visto em retrospecto, o contato com o Living Theatrer parece ter sido decisivo na tomada de decisão em favor do desbunde. O trabalho seguinte, Gracias, Señor, se mostraria a prova cabal disso.

Depois de cumprir uma temporada no Rio de Janeiro, com três espetáculos de seu repertório, o grupo partiu para uma excursão que mais parecia uma “Coluna Prestes” teatral, atravessando uma considerável porção do território nacional (em especial o norte e o nordeste). Paulatinamente, o Oficina vai deixando de ser uma companhia para se tornar uma comunidade. A nova conformação, mais horizontalizada em suas hierarquias, exigiria até um novo nome, que passou a ser Grupo Oficina Brasil em Re-volição. Não faziam mais teatro, mas te-ato.

A viagem daria origem a Gracias, Señor, primeira obra do Oficina, em sua fase profissional, construída com dramaturgia de autoria coletiva. Sua concepção, avessa por completo à frontalidade do palco italiano, previa um espetáculo processional que se desenrolava ao longo de duas noites consecutivas. Estreado em 1972, Gracias, Señor significaria, na trajetória do grupo, o ápice de um teatro visto não como representação, mas como um congraçamento, uma celebração a irmanar, num mesmo espaço, espectadores/as e atuadores/as (te-ato).

Contudo, apesar da proposta inusitada, que já se apresentara de modo embrionário em Galileu Galilei, o trabalho teve vida curta, devido à interdição que sofreu da censura. Tal como ocorrera com Na Selva das Cidades, ainda que por motivos diferentes, poucas pessoas tiveram a oportunidade de assistir a Gracias, Señor. Mesmo assim, apesar da curta existência, o espetáculo geraria uma enorme celeuma entre o seu criador e a crítica teatral de São Paulo, que a seu tempo será comentada.

Finalmente, em dezembro daquele mesmo ano, o Oficina lançaria sua última montagem antes de partir para o exílio. O texto? As Três Irmãs, de Anton Tchekhov. Diante do que até aqui foi exposto, a escolha de uma peça mais tradicional, ligada a uma estética que o grupo já deixara para trás, parecia ser, e era, a tentativa de um recuo estratégico, uma resposta a certas tendências disruptivas que poderiam exaurir as energias do grupo, de modo a deixá-lo anérgico.

De acordo com Aimar Labaki, em seu livro sobre José Celso, As Três Irmãs foi concebido e ensaiado à base de mescalina e LSD. Além disso, sua encenação estruturou-se a partir de uma mandala desenhada na parede do fundo do Teatro Oficina. O resultado teria sido um espetáculo muito bonito visualmente, com cenas dotadas de uma plasticidade poderosa, mas “minado”, na expressão de Fernando Peixoto, por suas contradições internas, as mesmas que se apresentaram em Galileu Galilei, isto é, a divisão entre uma estética ligada à ideia de representação teatral, convivendo com outra disposta a ver o teatro como um grande coro celebratório.  

Se José Celso se inclinava, com a paixão que lhe era peculiar, pelo coro, Renato Borghi, outro membro fundador do Oficina, não escondia sua insatisfação com os rumos tomados pelo coletivo, cada vez mais distantes de seus ideais artísticos e de sua formação de ator. Ao final de uma apresentação ocorrida no réveillon de 1972 para 1973, na qual o elenco procurou se irmanar, de mãos dadas, com o público, conclamando-o a uma espécie de “comunhão espiritual”, Borghi resolveu anunciar sua saída do grupo. Daquele momento em diante, o Teatro Oficina se tornaria, em certa medida, um empreendimento exclusivo de José Celso.

A Prisão, a Tortura e o Exílio

Em 1974, ano final do truculento governo Médici, já não era mais possível ao Teatro Oficina permanecer no Brasil, pois o garrote da ditadura se apertara a um ponto insustentável, prestes a estrangulá-lo. Naquele ano, ocorreu uma invasão da polícia à sede do grupo, motivada, na versão dos invasores, pela suspeita da venda de entorpecentes no local. Seis pessoas ligadas ao Oficina foram presas, e assim permaneceram durante 93 dias, até serem soltas e absolvidas.

Em seguida, José Celso e mais três colegas de trabalho seriam presos e levados para o terrível Dops, instituição símbolo da repressão civil-militar. No caso do encenador, ele ali permaneceria durante 20 dias, onde, além de ter sua liberdade cerceada, sofreu as terríveis agruras da tortura. Após uma intensa movimentação internacional para tirá-lo daquela situação subumana, ele foi libertado, mas seus dias de Brasil estariam, daquele instante em diante, contados, pois ninguém poderia mais garantir sua integridade física. Para preservá-la, Zé Celso, acompanhado de alguns integrantes do grupo, decidiu autoexilar-se em Portugal.

Em terras lusitanas, o Oficina montou uma nova versão de Galileu Galilei, com o próprio Zé Celso no papel-título. Posteriormente, esse trabalho acabaria se subdividindo em dois espetáculos, um chamado Os Discursos do Movimento e o outro O Carnaval do Povo. Antes de deixar Portugal, o Oficina encenou ainda uma criação coletiva (A Luta pela Sobrevivência) e uma produção de te-acto (Há Muitos Objetos num Só Objeto). Entrementes, numa parceria com a Rádio e Televisão Portuguesa (RTP), José Celso dirigiu o filme O Parto, sobre a Revolução dos Cravos.

Após uma crise interna no grupo, Zé Celso e Celso Lucas vão para Moçambique, onde, em parceria com o Instituto Nacional de Cinema, realizaram o documentário Vinte e Cinco, sobre a independência do país. Naquele momento, o Oficina se resumia apenas aos dois. Em 27 de junho de 1978, deu-se o regresso de Zé Celso ao Brasil, com Celso Lucas chegando alguns dias depois.

O Retorno ao Brasil

De volta à terra-natal, a sorte não sorriria de imediato ao encenador paulista. Reaberto no dia 21 de abril de 1979, agora com o nome de Oficina Quinto Tempo, o grupo só retomaria suas atividades, ao menos na produção de novos espetáculos, muitos anos depois, em meados da década de 1990. Em sua reabertura, além de seus desafetos habituais, o Oficina teve de se deparar com um novo adversário: o Grupo Silvio Santos, que adquirira alguns terrenos no mesmo quarteirão do Teatro Oficina e que exerceria, dali em diante, um implacável assédio imobiliário contra o coletivo da rua Jaceguai.

José Celso interpretando “Galileu Galilei” no exílio em Portugal. Teatro São Luiz, 1975.

Vem dessa época a ideia de se derrubar o edifício teatral ali existente, cujo último projeto, com palco italiano, pertencia a Flávio Império, para dar lugar a outro, concebido como um “teatro passarela”, de autoria de Lina Bo Bardi e Edson Elito. Não bastasse a reforma completa de seu edifício-sede, o projeto de Bo Bardi e Elito previa ainda a construção, no entorno, de um teatro de estádio, nos moldes sonhados por Oswald de Andrade em um texto intitulado “Do Teatro, Que É Bom…”, de 1943.  

Fora do Oficina, Zé Celso foi convidado a dirigir um espetáculo com uma turma de formandos da Escola de Arte Dramática da USP, a conhecida EAD. Como resultado dessa parceria, veio à tona, em 1982, o trabalho intitulado Mistérios Gozosos, adaptação cênica, feita pelo próprio Zé Celso, do poema Santeiro do Mangue, de Oswald de Andrade. A sequência inicial, que promovia uma suruba em cena, causou escândalo na época, anunciando a hipersexualização de alguns futuros trabalhos do encenador.

Seria esse, no entanto, praticamente o único espetáculo produzido por Zé Celso na década de 1980. Daí não se conclui, ressalte-se, que ele não tenha trabalhado, e bastante, naqueles tempos. Observados em retrospecto, conforme o faz Aimar Labaki, “(…) esses longos anos de atuação na arena pública, numa luta quixotesca pela construção de seu novo teatro e pelas condições de produção para realizar os projetos cada vez mais megalômanos e delirantes que anunciava, podem ser vistos como a gestação do grande milagre dos anos 90, a sucessão de grandes encenações que estavam por vir”. Ainda assim, essa suposta indolência de sua parte lhe garantiria, durante um certo período, a pejorativa alcunha de “decano do ócio”.

Outro fator, que não pode ser esquecido, a explicar esses anos de ostracismo, se liga ao brutal assassinato de seu irmão, o também encenador Luís Antônio Martinez Corrêa, ocorrido em dezembro de 1987. A superação da dor – se é que isso é possível – e a consequente volta por cima só aconteceriam em 1991, quando, ao se unir a Raul Cortez e Marcelo Drummond, Zé Celso criou o espetáculo As Boas, adaptação da conhecida peça As Criadas, de Jean Genet.

O Fim do Ostracismo e a Consagração Definitiva

Concebida em tom farsesco, com os três atores em cena travestidos de mulher, As Boas obteve um sucesso considerável, recolocando o nome de Zé Celso na ordem do dia. Também contribuiu para isso, voluntária ou involuntariamente, um lamentável mal-entendido ocorrido entre ele e Raul Cortez, no último dia da temporada, relacionado ao pagamento do elenco, que se transformou numa polêmica a transbordar para as páginas dos jornais.

 Mas a redenção definitiva só se daria mesmo no ano seguinte, com a reinauguração do edifício-sede nos moldes concebidos por Lina Bo Bardi e Edson Elito. Rebatizado, desde 1984, com o nome de Teatro Oficina Uzyna Uzona, iniciava-se aí um período maravilhosamente fértil na trajetória do grupo, boa parte dele, como já se falou, semeado na década anterior.

 O espetáculo que deveria marcar a reabertura da sede e a volta às atividades do Oficina foi Ham-let, assim mesmo, com o hífen inexistente no título original. Levando em consideração que Ham, em inglês, seria uma gíria a designar canastrão, ou seja, o mau ator dramático, compreende-se a leitura empreendida por Zé Celso para a tragédia shakespeareana, totalmente dessacralizada e que flertava, às vezes, com o puro deboche.

A esta obra, verdadeira revelação a toda uma geração que jamais havia visto um teatro como aquele, encenado num corredor a emular uma passarela de samba, seguiram-se muitas e muitas outras, a respeito das quais seria impossível comentar todas, sob pena de o texto se estender em demasia. Aqui é válido abandonar, ainda que provisoriamente, o relato em terceira pessoa, visto que tive a oportunidade de assistir, in loco, a muitos desses trabalhos. Não se trata, por conseguinte, de um conhecimento intermediado por livros, documentários e aulas, mas, sim, pela experiência empírica imediata.

Marcelo Drummond, Raul Cortez e José Celso em “As Boas” (1991) Foto: Fernando Sampaio/Estadão

Tomando como referência somente as obras circunscritas à direção de Zé Celso e encenadas após Ham-let, tem-se, ao todo, um número muito representativo de espetáculos, mencionados aqui na sequência cronológica de suas estreias: Mistérios Gozosos (1994), As Bacantes (1996), Para Dar um Fim no Juízo de Deus (1996), Taniko, O Rito do Vale (1997), Ela (1997), Cacilda! (1998), Boca de Ouro (1999), Os Sertões (2002), Taniko, O Rito do Mar (2008), O Banquete (2009), Estrela Brasyleira a Vagar – Cacilda!! (2009), Macumba Antropófaga (2011), Acordes (2012), Cacilda!!! (2013), Walmor y Cacilda 64 – Robogolpe (2014), Fausto (2022) e Esperando Godot (2023).

José Celso como Antônio Conselheiro em “Os Sertões” Foto: Lenise Pinheiro

É bom deixar claro que se trata de uma lista sumária, pois ela não conta as remontagens e nem o desmembramento de uma obra como, por exemplo, Os Sertões, pentalogia lançada entre 2002 e 2006. Chegando à cidade de São Paulo em janeiro de 2004, meu primeiro contato com o Teatro Oficina aconteceu naquele ano, quando fui assistir à terceira parte de Os Sertões (O Homem II). Com 26 anos de idade, embora já conhecesse a fama que o grupo carregava, acreditei que nada ali iria me impressionar muito, “macaco velho” que era. Enganei-me redondamente. Não cabe aqui detalhar o que vi e o que experienciei na ocasião, algo desde então atrelado ao meu anedotário pessoal, divulgado em prosa e verso em rodas de bar e até em minhas aulas de história do teatro. Alegoricamente falando, ali se consumou o que eu costumo chamar de “beijo de Dionísio”, ou seja, o momento em que, numa explosão de entusiasmo, adentrei no cortejo do deus pagão, formando fileira entre os que fazem do teatro o seu sacerdócio – mesmo que pelo lado da teoria e da crítica.

Morando durante alguns anos em São Paulo e, depois, em São José dos Campos, cidade próxima da capital paulista, tive a oportunidade de assistir a boa parte dos espetáculos supracitados, às vezes em suas montagens originais, às vezes em remontagens. Poucos foram aqueles que, de algum modo, não me marcaram. Exceção feita a esses trabalhos, quase todos os outros que vi, do meu ponto de vista, mereceriam o qualificativo, tão surrado hoje em dia, de obras-primas. E o mais interessante: nem sempre essas maravilhas se enveredavam pela estética artaudiana, aquela que se tornaria, nessa etapa mais recente do Oficina, hegemônica dentro do grupo.

Zé Celso e a Crítica Teatral

Dono de uma personalidade exaltada, para não dizer estridente, o convívio de José Celso com a crítica teatral jamais poderia ser pacífico, como, de fato, não foi. O primeiro grande entrevero, salvo engano, se deu em 1968, tendo como contendor aquele que seria o maior crítico da época: Décio de Almeida Prado. Em sua apreciação de O Rei da Vela, publicada mais ou menos um mês após a estreia do espetáculo em São Paulo, Prado elogiou a montagem realizada pelo Oficina, destacando, entre outras coisas, a sua fidelidade ao original oswaldiano. Para o intelectual paulista, os estilos utilizados pela encenação na composição dos primeiros atos da peça, inspirados no circo e no teatro de revista, estariam em perfeita sintonia com as sugestões advindas do texto. Somente o último ato, concebido em estilo operístico, se mostraria dissonante nesse quesito, ao se distanciar de sua prefiguração literária.

Décio de Almeida Prado em 1958 Foto: Fredi Kleemann

A reação de José Celso contra esse elogio, ainda que seguido de uma pequena reserva, apareceu numa entrevista concedida a Tite Lemos entre março e abril de 1968, originalmente publicada na revista aParte. Numa longa e bastante clarividente peroração acerca do ofício da encenação, Zé Celso procurou refutar certos pressupostos teóricos que sustentariam a apreciação de Prado, afirmando que “O Rei da Vela é principalmente um texto sobre o texto de Oswald. Uma obra de direção”. Mais à frente, ele complementa o seu raciocínio: “Eu me permiti, na direção, a mesma liberdade que Oswald se deu quando ‘leu’ e interpretou o Brasil de seu tempo. Reli o texto de Oswald como uma manifestação da realidade que me circunda e enxertei todo o contexto que a envolve, como eu o apreendo”.

Uma vez concluídas tais considerações teóricas, o encenador, bem ao seu estilo, espicaçou a crítica teatral de então, ao asseverar que ela, ao invés de se afirmar como a consciência da classe teatral, portava-se como “a consciência de um teatro morto, ou melhor, uma consciência morta”. A virulência de Zé Celso contra a crítica, exposta nessa famosa entrevista, parece ter incomodado Anatol Rosenfeld, outra figura da mais alta importância no campo da crítica e da teoria teatral, que, por conta própria, resolveu se meter na contenda.

Em um ensaio intitulado “O Teatro Agressivo”, hoje disponível no volume um de Texto/Contexto, o teórico alemão faz uma reflexão sobre as origens e os preceitos norteadores desse tipo de expressão cênica mais radical, disposta a incomodar e até mesmo a ofender o público no intuito de tirá-lo de seu conforto e de sua passividade habituais, fruto de uma atitude contemplativa diante do fenômeno teatral. Em uma admoestação ostensivamente dirigida ao principal encenador do Oficina, Rosenfeld, na parte final do texto, defende que esse tipo de teatro, quando desprovido de “exatidão sociológica” ou apartado de um “contexto estético válido”, se mostraria, ao invés de progressista, conservador: “Deste teatro neoculinário, que estabelece uma relação morna de conluio sadomasoquista, o público burguês acaba saindo sumamente satisfeito, agradavelmente esbofeteado, purificado de todos os complexos de culpa e convencido do seu generoso liberalismo e da sua tolerância democrática, já que não só permite, como até sustenta um teatro que o agride”.

Sábato Magaldi, aos 85 anos, em 2012. Foto: Leonardo Soares/O Globo

Mas a maior de todas as polêmicas com a crítica ainda estava por vir. Ela se deu em 1972, ano do lançamento de Gracias, Señor, espetáculo que antecipava, em alguns aspectos, muito do que se tornou, mais recentemente, o Oficina Uzyna Uzona. Desta vez, o alvo da fúria de Zé Celso seria Sábato Magaldi, crítico, na ocasião, do Jornal da Tarde (SP).

Ao escrever sobre Gracias, Senõr em sua coluna, Magaldi teceu palavras duras a esse trabalho, expressas, por exemplo, na seguinte passagem: “Fica, então, uma caricatura da verdade, preenchida por todas as baboseiras da moda no teatro de vanguarda, inspiradas em grande parte no arsenal das teorias irracionalistas: contato sensorial, desafio pelo fluído do olhar, suposta capitação de energias e uma comunhão estancada pelas exigências dos chamados bons costumes (qualquer baile de Carnaval é mais autêntico do que a festa improvisada no palco). O ‘te-ato’ se transforma numa repressão ao teatro”.

Após a publicação no jornal, José Celso respondeu ao crítico num texto policopiado divulgado sob o título “Carta Aberta ao Sábato Magaldi, Também Servindo para Outros, Mas Principalmente Destinada aos Que Querem Ver Com os Olhos Livres”. Nele, toda a crítica teatral paulistana é duramente atacada pelo encenador, que a acusa de velha e ultrapassada, defensora de um racionalismo tido como morto. A tréplica de Sábato Magaldi, distribuída então a amigos e a elementos da chamada “classe teatral”, tal como a réplica, não primava pela cortesia argumentativa, incluindo até insinuações de cunho sexual.

A última grande querela aconteceria muitos anos depois, em 1998, agora não mais pela via de textos impressos, mas pela televisão, em uma altercação acontecida no programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, quando este recebeu a decana da crítica teatral carioca Bárbara Heliodora. Convidado na condição de entrevistador, ao lado de outros/as colegas de profissão, Zé Celso, em um determinado momento da atração, transmitida ao vivo, pediu a palavra, abriu um vinho na bancada em que se encontrava, e simplesmente desancou Heliodora, dirigindo-lhe uma série de impropérios motivados, tudo indica, pela crítica tecida por ela, anos antes, acerca de Hamlet.  

Esse trecho da entrevista, no qual a grande especialista em Shakespeare ouve impassível os insultos de Zé Celso, tomou conta das redes sociais nos dias que sucederam à morte do artista.

A crítica teatral Mariângela Alves de Lima durante homenagem recebida na cerimônia do Prêmio Shell de Teatro de São Paulo, em 2012. Foto: Juan Guerra

Por fim, seria de bom alvitre lembrar que Zé Celso já saiu a campo também para defender uma crítica teatral. Isso aconteceu em 2011, por ocasião da suposta demissão de Mariângela Alves de Lima do jornal O Estado de São Paulo. Ao saber de sua saída, Zé Celso escreveu um texto no seu blog nomeado “Má Notícia para a História do Teatro Brasileiro”, no qual tece elogios rasgados ao trabalho da crítica, conclamando os editores do Estadão a readmitirem-na. Mas Zé Celso é sempre Zé Celso: entre os muitos encômios dirigidos a Mariângela, intercalam-se, aqui ou acolá, vários petardos lançados a um/a ou outro/a crítico/a do momento, de maneira velada ou não.

Zé Celso e a Historiografia Teatral

É muito provável que o Teatro Oficina seja um dos grupos mais estudados na história do teatro brasileiro, dentro e fora das academias. Ao longo dos anos, muitos livros, artigos, teses e dissertações sobre o grupo – e, por extensão, sobre Zé Celso – foram escritos, alguns mencionados aqui mais de uma vez. Além desses trabalhos, voltados somente à trajetória do Oficina, muitos outros, de feitio mais panorâmico, incluíram o coletivo paulistano em seus escopos, analisando-o numa perspectiva mais ampla.

Em O Teatro Brasileiro Moderno, de Décio de Almeida Prado, encontra-se uma interpretação um tanto contraditória sobre o legado de Zé Celso. Mesmo reconhecendo, sem meias palavras, seu enorme talento como encenador, demonstrado pelo desembaraço com que transitava por diferentes estéticas, Prado o vê como um dos culpados por uma suposta decadência do teatro brasileiro.

Escrito no início da década de 1980, na ótica do historiador, a trajetória do Oficina – que exponencialmente vai minando, de um lado, os alicerces do teatro dramático (calcados, é claro, no drama), e, de outro, os alicerces empresarias que mantinham o sistema de produção das grandes companhias – ao servir de (mau) exemplo para os pósteros, fizera com que o teatro brasileiro perdesse o seu “ponto de equilíbrio”.

Outra obra historiográfica bastante crítica em relação ao trabalho de Zé Celso é A Hora do Teatro Épico no Brasil, de Iná Camargo Costa, cuja primeira edição é de 1998. Embrenhando-se pelas veredas da crítica ideológica, a partir de premissas marxistas, Costa concentra fogo especialmente em dois espetáculos do encenador: O Rei da Vela e Roda Viva. Para a autora, numa argumentação densa e caudalosa, quase impossível de resumir aqui, Zé Celso teria treslido, nas respectivas montagens, a semântica original das peças, esvaziando ou até mesmo invertendo os seus enunciados políticos. Tal inversão seria, é claro, num sentido retrógrado, tendo em vista oferecer um teatro político palatável ao gosto burguês.

Nas palavras da pesquisadora, “olhares um pouco mais perspicazes percebiam, entretanto, que a guinada vanguardista (iniciada timidamente em 1966, oficializada pelo Oficina em 1967 e consolidada por José Celso em 1968 com Roda Viva), na verdade reinstalava a cena brasileira no descampado da ideologia burguesa e, inventando e explorando jogos apropriados ao terreno, tinha como efeito tornar ‘habitável, nauseabundo e divertido o espaço do niilismo de após-64’”. Com base em semelhante arrazoado, Costa culpabiliza a trabalho de Zé Celso por fechar as portas do moderno teatro político no Brasil – aquele encampado, em anos anteriores, principalmente pelo Teatro de Arena – a despeito (ou não) de seu encorpado vanguardismo.

Fernando Peixoto, Ítala Nandi e José Celso reunidos em 2001. Foto: Adriana Zehbrauskas/Folhapress

No âmbito dos estudos voltados exclusivamente à história do Oficina, o mais crítico parece ser Teatro Oficina (1958-1982): Trajetória de uma Rebeldia Cultural, de Fernando Peixoto, lançado em 1982. Na condição de ex-integrante, Peixoto realiza, nesse trabalho, algo como a crítica interna do grupo. Em seu relato, percebe-se uma grande admiração pelas conquistas de Zé Celso à frente da trupe, entremeadas de grandes lamentações pelos rumos tomados por ele a partir de um determinado ponto (1968), cada vez mais propensos ao irracionalismo artaudiano.

Se se pode resumir o pensamento de Peixoto, para o teórico gaúcho um teatro de cunho imanente, nos moldes estabelecidos por Bertolt Brecht, seria incompatível com um teatro de cunho transcendente, exatamente aquele proposto por Antonin Artaud. A “tragédia” do Oficina, em sua interpretação, estabeleceu-se quando o grupo, sob a liderança de Zé Celso, passou a conciliar, sem o devido conhecimento de causa, dois polos em tese inconciliáveis. Essa contradição aporética, que inclusive motivou Peixoto a sair do grupo, não teria sido jamais resolvida, ao menos até o momento em que seu livro foi escrito e editado.

Em verdade, o cerne da crítica de Fernando Peixoto se aproxima, em seus pressupostos teóricos, às reservas tecidas, e já expostas, por Anatol Rosenfeld e Iná Camargo Costa. Em outro livro de sua lavra, o ótimo O Que é o Teatro? (1983), Peixoto deixa bem claro de que lado, nessa contenda, ele sempre esteve. Ao dissertar sobre as características primordiais do teatro sacralizado propugnado por Artaud, o autor assevera: “O teatro de participação física, […], acaba se transformando em teatro de comunhão metafísica. Uma nova forma de catarse, que afasta a temática política e recusa a discussão sobre a realidade, refugiando-se na celebração de uma espécie de êxtase coletivo, baseado no instinto e na irracionalidade. Enfim, um teatro de autossatisfação”.

Numa linha de raciocínio bem diferente, encontra-se a análise de Sílvia Fernandes, exposta no ensaio “Notas sobre a História do Oficina”, publicado na revista Sala Preta de 2020. Em seu trabalho, bem mais recente que os demais até aqui mencionados, Fernandes se debruça sobre a história do grupo entre os anos de 1993 e 2006, ou seja, no período compreendido entre a retomada do Oficina e a estreia da quinta e última parte de Os Sertões.

Não deixando de considerar, apesar do recorte, a história pregressa do coletivo, a imagem dele oferecida pela autora, na comparação com seus antecessores, lhe é bem mais favorável. Sem se desvencilhar das questões políticas imbricadas à estética teatral, Fernandes defende que a teatralidade sobressaltada do Oficina Uzyna Uzona, disposta a se distender em ações performativas, suplantou os limites tradicionais do teatro, assumindo uma tendência vitalista consubstanciada no ideal do coro.

Semelhante noção, que obviamente não se restringe aos atuadores/as do grupo, estendendo-se aos espectadores, traria consigo, em perspectiva moderna, aspectos atávicos do coro originário grego, ligados a questões de cidadania. Ou seja, da relação das pessoas com a cidade, palavra que aqui deve ser tomada em seu sentido stricto (a esfera municipal de poder) quanto, também, num sentido lato (outras esferas políticas como, por exemplo, o Estado e a União). Encarados por esse ângulo, os expedientes performativos do Oficina estariam longe de configurarem uma estética reacionária.

De todos os estudos dedicados ao grupo, é provável que o mais consagrador, no sentido de lhe devotar mais admiração, seja o de Edélcio Mostaço (Teatro e Política: Arena, Oficina e Opinião), publicado em 1982. O subtítulo desse trabalho, suprimido posteriormente na segunda edição, é Uma Interpretação da Cultura de Esquerda, que deixa à mostra, de imediato, seu viés analítico, situado no terreno da crítica ideológica.

Todavia, apesar de se enveredar pela mesma seara interpretativa de pesquisadores/as como Fernando Peixoto e Iná Camargo Costa, suas conclusões e juízos de valor a respeito do Teatro Oficina são diametralmente opostas às de seus colegas. Com efeito, se poderia afirmar, sem muito exagero, que o estudo de Mostaço representaria, na comparação com os de Peixoto e Costa, o “reverso da medalha” no que concerne ao legado deixado pelo grupo e à sua imagem perante a história do teatro brasileiro.

A ideia primordial do autor, munido de farta bibliografia extrateatral, é a de que, no decorrer dos anos de 1950, emergiu no país uma cultura de esquerda bastante peculiar, disposta a aceitar, por motivos estratégicos, uma conciliação de classes, segundo a qual o proletariado deveria abrir mão, por um certo tempo, da luta pela derrocada burguesa. Naquele momento histórico específico, mais importante do que o conflito de classes seria o combate ao imperialismo e à força exercida pelo capital internacional, fatores impeditivos para que o Brasil superasse a modernidade.

  Desenvolvida nas fileiras do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e, também, do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), ainda que de modos diferentes, tal estratégia se tornaria, nos anos seguintes, uma ideologia (quase) hegemônica no campo da esquerda, antecedendo e mesmo sucedendo, em alguns anos, ao golpe civil-militar de 1964. A ela dar-se-ia o nome de frente nacionalista.

Caracterizada, antes de tudo, por esse pacto conciliatório, a frente nacionalista teria fincado raízes profundas na arte brasileira daquele período, podendo ser surpreendida, dentro do teatro, especialmente nas práxis de dois coletivos: o Teatro de Arena, em São Paulo, e o Grupo Opinião, no Rio de Janeiro. Cada qual, por vias distintas, estaria atrelado, em maior ou menor grau, ao pacto estabelecido pela frente, que se refletiria na dramaturgia e nos expedientes cênicos encampados por ambos.

Dentro do espectro ideológico da esquerda, somente o Oficina, entre os grupos analisados, fugiria à regra, ao negar o pacto em favor da consecução de um teatro mais anarquista do que socialista, e que, por isso mesmo, se mostraria mais disruptivo em relação ao status quo do que aquele promovido pelos seus pares frentistas. A esse caminho percorrido por Zé Celso e o Teatro Oficina, Edélcio Mostaço designa de “terceira via”.

Em um determinado trecho do seu livro, o pesquisador paulista assim define sua posição a esse respeito: “Negando atrelar-se aos compromissos populares então em voga, o Oficina atingia com tiro certeiro o alvo da questão naquele momento: a classe que frequentava o teatro era a pequena burguesia, e era ela quem estava sendo mobilizada contra a propaganda revolucionária. Um apelo à conscientização só poderia ser efetivado, nessa ambiência, dentro da perspectiva e dos referenciais dessa mesma classe. Assim o Oficina, contrário ao voluntarismo teleológico do CPC [Centro Popular de Cultura] e da frente nacionalista que carreava o grosso da produção artística ao redor, fazia por seu público um duplo trabalho: propunha-lhe uma opção ideológica claríssima e, ao não mistificá-lo, possibilitava que tal opção germinasse fora das paredes do teatro”.

Nesse sentido, ao encetar, por intermédio de seus procedimentos criativos, uma “revolução permanente”, o Oficina realizaria um trabalho de fundamental importância no âmbito da resistência ao regime, colocando em xeque contínuo todas as estruturas sociais, “inclusive e principalmente as mentais”.

A Questão da Nudez e da Sexualização dos Espetáculos de Zé Celso

Não há dúvida de que um dos elementos mais folclóricos ligados à poética de Zé Celso tem a ver com uso feito por ele, em escala crescente, da nudez, aliada a uma hipersexualização de seus espetáculos que não se restringia aos atuadores/as do Oficina, estendendo-se, com frequência, ao público. Com o passar do tempo, semelhante despudor cênico se tornaria, sem dúvida, um dos traços definidores do grupo, objeto, inclusive, de muitas piadas e paródias.

Mas por que, afinal, isso acontecia? Quais seriam os principais preceitos teóricos e estéticos que explicariam e, mais do que isso, sustentariam tamanho desbragamento sexual? Sem querer emitir respostas definitivas, é possível rastrear, com alguma segurança, certos preceitos que estariam por detrás dessa tendência, que para muita gente não ultrapassaria os limites da mera pornografia.

José Celso em 2007, no Recife. Foto: Chico Porto/Estadão Conteúdo

Acredita-se que, na conformação dessa marca, quatro forças ou influências se conjugam, uma não excluindo, necessariamente, a outra, antes pelo contrário. O primeiro desses vetores seria de ordem social, seguido por outros de ordem teatral, literária e psicológica.

O fator social atende pelo nome de contracultura. O Teatro Oficina, amadurecido na agitadíssima década de 1960, absorveu, como talvez nenhuma outra companhia, o espírito de sua época, responsável por promover, no auge da Guerra Fria, uma revolução cultural e comportamental. A disposição para romper arcaicos tabus sexuais, bem como de experienciar a abertura das “portas da percepção” pelo uso das drogas, são atitudes que marcaram toda a geração baby boom, da qual Zé Celso sempre se mostrou um legítimo representante, embora nascido antes da Segunda Guerra Mundial.  

O fator teatral se liga, com toda certeza, à grande influência exercida, no interior do Oficina, pelo teatro da crueldade de Antonin Artaud, coadjuvada pelas proposições de Jerzy Grotowski e seu teatro pobre. Se, no início desse contato, Zé Celso parece ter interpretado o conceito de crueldade ao pé da letra, na difusão de um teatro de agressão, mais tarde, ao absorver melhor as propostas artaudianas, ele as encaminhou numa direção mais correta, relacionada à noção de comunhão.

Nessa busca em oferecer ao público uma experiência dionisíaca, capaz de desencadear nele uma vivência de natureza mítica, algo primordial para o teatro sonhado por Artaud, objetiva-se, no plano da recepção, tornar o/a espectador/a permeável a um processo de dissolução psicológica. Bombardeado por estímulos sensoriais de diversa ordem, o/a receptor/a teatral passa por um experimento “intelectual” enraizado, acima de tudo, no corpo, compreendido em toda a sua complexidade psicofísica.

O ator, encenador e teórico do teatro Antonin Artaud, em cena do filme “A Paixão de Joana D’arc” (1928).

Em seus substratos conceituais, trata-se de uma forma de provocação que procura atingi-lo no intuito de eliminar seus automatismos físicos e mentais, preparando o “terreno”, por assim dizer, para o afloramento de novos estados de ser. Ou, em outras palavras, de uma desestabilização da identidade, entidade construída à base de uma série de forças coercitivas.

Dito tudo isso, da maneira mais sintética possível, sobrevém a questão fulcral: nesse processo de libertação corporal, estaria embutida, aberta ou veladamente, o abandono do pudor, materializado na nudez e no contato sensual a envolver atuadores/as e espectadores/as? A resposta, faz-se necessário ressalvar, não é de fácil resolução. Nos textos reunidos em O Teatro e Seu Duplo, Artaud não vislumbra essa problemática, ao menos não em tais dimensões, provavelmente porque, no tempo em que viveu, anterior à contracultura, promover um despudoramento da cena ao nível acima exposto seria algo inimaginável.

No intuito de oferecer uma proposição aceitável, vale a pena recorrer às palavras de um especialista no assunto, o professor e pesquisador Cassiano Sydow Quilici, que em seu livro sobre o encenador francês (Antonin Artaud: Teatro e Ritual), faz a seguinte observação: “(…) não é fácil enquadrar Artaud no imaginário contracultural que operava, muitas vezes, com a oposição entre ‘corpo reprimido’ e ‘corpo liberado’. Em seus escritos encontramos desde a investigação de um erotismo desenfreado, que ultrapassa todas as leis da cultura e tende ao absoluto (como na obra Heliogabale, ou L’Anarchiste Couroneé), até a condenação da sexualidade e a defesa da castidade, presentes nos escritos de Rodez, que correspondem ao ‘ideal gnóstico’ da pureza corporal. A questão do desejo em Artaud foge aos enquadramentos e dualidades habituais, e exigiria, por si só, um trabalho aprofundado de investigação”.

Afiando-se na argumentação de Quilici, se poderia deduzir que a interpretação adotada por Zé Celso das teorias artaudianas correria sérios riscos de não passar pelo crivo de uma apreciação acadêmica? É provável. Mas, mesmo assim, cabe replicar: e daí?! Se um acadêmico precisa prestar contas à comunidade dentro da qual se insere, um artista como Zé Celso estaria completamente isento desse compromisso, podendo se dar ao luxo de “deglutir” Artaud da maneira que melhor lhe conviesse. O mesmo vale para as proposições de Jerzy Grotowski, cujos conceitos de “ator santo”, autopenetração” e “via negativa”, muito provavelmente, ao inseminarem a poderosa sensibilidade artística de Zé Celso, ganharam uma aplicabilidade que fugiria, em maior ou menor escala, àquela idealizada pelo encenador polonês.

O escritor Oswald de Andrade em 1954.

Conforme ressalta Armando Sérgio da Silva, em Oficina: do Teatro ao Te-ato, “as sérias pesquisas sobre o pensamento teatral de Jerzy Grotowski, empreendida durante os ensaios de Na Selva das Cidades, de Bertolt Brecht, só contribuíram para que o grupo continuasse a acentuar, de maneira cada vez mais extremada, não a interrelação, mas a interação ator-público”. Que essa interação, com o passar dos anos, atingiria as raias de um contato francamente sexualizado, a congregar elenco e público num só coro orgiástico, é algo que Grotowski, no período em que produziu espetáculos (1959-1969), não ousou, nem de longe, levar a cabo.

A terceira linha de força a explicar a linguagem lasciva e indecorosa burilada pelo Oficina, principalmente em sua segunda fase de ebulição (1993 em diante), vem de uma sugestão literária, a saber, a obra ensaística e poética de Oswald de Andrade. Adepto assumido das teses primitivistas desenvolvidas pelos modernistas de 1922, dentro da linhagem à qual Andrade fazia parte, Zé Celso parecia levar a sério a recomendação gaiata de seu antecessor, presente no poema “Erro de Português”, de 1925, onde se lê:

Quando o português chegou

Debaixo duma bruta chuva

Vestiu o Índio

Que pena!

Fosse uma manhã de sol

O índio tinha despido o português

Seria esse, para os dois artistas, o “pecado original” da civilização brasileira, ao qual caberia, pela via artística, expiar. No famoso Manifesto Antropófago (1928), Andrade, por meio de um genial trocadilho, expressa esse sentimento na forma de um dilema hamletiano: “tupi or not tupi, that is the question”. Anos depois, ao musicar essa passagem, o Teatro Oficina a transformaria num poderoso refrão, verdadeiro leitmotiv a evocar suas raízes modernistas e, mais do que isso, oswaldianas.

Dentro desse caldeirão de influências que agiram sobre Zé Celso, cabe ainda levantar uma última referência, saída do campo da psicologia. Trata-se da obra de Wilhelm Reich, autor de A Revolução Sexual (1936) e Psicologia de Massas do Fascismo (1933). Para o polêmico psicanalista, cuja obra se associa à contracultura, haveria uma relação direta entre as estruturas sociais e as estruturas subjetivas. Isso equivale a dizer que as estruturas sociais, com seus poderes repressores, seriam introjetadas pelos indivíduos, na forma de couraças físicas e psíquicas aprisionadoras de suas subjetividades. Não é difícil deduzir, a partir dos dados apresentados, para qual fim Zé Celso, ao ler o pensador austríaco ainda na década de 1960, irá destinar seu teatro. A desconstrução, é claro, de tais couraças, que na ótica reichiana, de fato, se ligam diretamente ao universo da sexualidade humana.

A Questão Ideológica: a Estética do Oficina é, afinal, Progressista ou Reacionária?

Desde o início deste artigo, se tem abordado, com frequência, a problemática político-ideológica a envolver as encenações de Zé Celso, com especial ênfase aos trabalhos em que, pelas influências supracitadas, a nudez e o desbragamento sexual despontam de maneira paroxística (As Bacantes seria, nesse sentido, o modelo paradigmático). Já foram expostos, até aqui, diferentes pontos de vista acerca do tema, que acaba se tornando controverso em razão deles não convergirem de modo algum. Há os que acusam a “estética do desbunde” de reacionária, há os que a tomam como progressista, numa proporção mais ou menos paritária.

Sem querer encerrar o debate, que é dos mais interessantes, trata-se, de certo modo, de uma falsa polêmica, especialmente quando analisada por um viés mais sincrônico do que diacrônico, isto é, mais atento às teorias do que à aplicabilidade delas dentro de um determinado contexto histórico.

O teatro moderno, em suas inúmeras manifestações, produziu, ao longo do tempo, duas formas que se poderiam taxar de revolucionárias, no sentido político do termo: o teatro épico-dialético, de um lado; o teatro da crueldade, de outro. Jogando no primeiro time, ainda que em diferentes posições, sobressaem os nomes de Vsevolod Meyerhold, Erwin Piscator e, claro, Bertolt Brecht. No segundo time, além da óbvia inclusão de Antonin Artaud, criador do conceito, agrega-se, com algumas ressalvas, o nome de Jerzy Grotowski, encenador que, até certo ponto, realizou, em sua prática cênica, aquilo com que Artaud apenas sonhara.

O teatro épico-dialético, indexado ao pensamento marxista, nega com veemência a ideia de indivíduo, um dos alicerces do liberalismo burguês, substituindo-a pela noção de sujeito, ou, para ser mais preciso, de sujeito-histórico. Contra uma concepção segundo a qual o homem é um ser que constrói autonomamente sua personalidade (individualismo), o teatro épico-dialético impõe outra, na qual ele é concebido como o conjunto de todas as relações sociais. Com efeito, antes de se sonhar com uma mudança ontológica do homem, seria necessário, primeiro, uma revolução social, que lhe desse condições, uma vez estabelecida, de ele desenvolver uma nova subjetividade, com base em novos valores.

O dramaturgo, teórico e encenador alemão Bertolt Brecht. Berlim, 1929. Foto: Ullstein Bild.

Já o teatro da crueldade, tudo indica, não chega a negar o primado do indivíduo. O que ele propõe, na realidade, é a criação de um novo indivíduo, que não seja, claro, aquele da ordem burguesa, autodeterminado e autoconsciente. Desprezando, em boa medida, as teorias racionalistas que se escondem por detrás dessa noção, ele sugere uma revolução a incidir diretamente no plano das subjetividades, com o objetivo de desrecalcá-las. Por intermédio de um processo cosmogônico, que privilegia formas de intelecção irracionais ou pré-racionais, o homem é levado a desenvolver e aprimorar novas camadas de percepção, que ultrapassariam, e muito, os limites cognitivos do indivíduo burguês. Se, no exemplo anterior, o páthos revolucionário deveria agir de fora para dentro do homem, aqui ele se dá no sentido inverso, sem ser, por isso, menos revolucionário.

Mesmo em teoria, os polos acima expostos não são nem antagônicos e nem excludentes, na medida em que eles também possuem características comuns. Para os propósitos deste trabalho, mais focado em discernir do que em equiparar, ainda haveria mais uma distinção a fazer, relacionada à posição ocupada por essas duas estéticas na história do pensamento ocidental. Enquanto o teatro épico-dialético mantém, com conforto, os dois pés fincados na modernidade, o teatro da crueldade, por seu turno, tem um pé assentado na modernidade e outro na chamada pós-modernidade. Se o primeiro adere ao projeto iluminista, com seu forte caráter universalista, o segundo tende a rejeitá-lo, em prol de uma visão de mundo mais particularista e, por conseguinte, mais ligada à concepção de alteridade.

O Teatro Oficina, em seus 65 anos de história, perpassou pelas duas estéticas, às vezes em separado, às vezes de maneira simultânea, agregando, numa mesma obra, Brecht e Artaud, Meyerhold e Grotowski, sem com isso perder o foco político, por mais que ele se apresentasse, para alguns, demasiadamente ambíguo. Se, a partir de um determinado momento, Artaud ganhou a dianteira na preferência do grupo, daí não se conclui que Brecht tenha sido deixado de lado. Ele sempre se manteve presente no trabalho de Zé Celso, pois este sempre ambicionou realizar um teatro que fizesse sentido, um teatro que, em outros termos, não se corporificasse em puro formalismo, “risco” contemplado pelo teatro da crueldade em sua busca por uma cena dessemantizada. 

Por todas essas questões, aliadas a muitas outras que ainda poderiam ser levantadas, fica mais fácil aquilatar o tamanho de sua importância para a cultura nacional. No âmbito mais específico do teatro, não é difícil imaginar que ele se torne, daqui pra frente, em termos simbólicos, sua figura número um, por ser aquela que melhor encarnaria, a despeito de seus dilemas e contradições, a expressão de uma cena autenticamente brasileira, debochada e carnavalesca. 


Rodrigo Morais Leite
Professor efetivo da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (ETUFBA) e professor-colaborador do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA. Com pesquisas desenvolvidas nas áreas de crítica teatral e história do teatro brasileiro, exerce atualmente o cargo de vice-diretor da Escola. É autor de No Camarim com Lélia Abramo (2019), História do Teatro Ocidental: da Grécia Antiga ao Neoclassicismo Francês (2020) e História do Teatro no Brasil e na Bahia: das Primeiras Ações Teatrais Jesuíticas ao Pré-Modernismo (2022).   

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Foto de Capa, crédito: Silvio Corrêa/Agência O Globo


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