Shakespeare, o bardo

por Rodrigo Morais Leite
“Ninguém faz nada em arte se lhe falta uma dimensão de mau gosto de Vicente Celestino. Todos nós somos um pouco o autor de ‘O Ébrio’. Shakespeare viveu grandes momentos de Vicente Celestino. Ricardo III tem coisas de ‘Coração Materno’ e ‘Ontem eu rasquei o teu retrato’.”
Nelson Rodrigues
 
William Shakespeare nasceu e morreu no dia 23 de abril, de 1564 e 1616. Ele mesmo, o bardo, o gênio atemporal, o poeta e dramaturgo considerado o primus inter pares da literatura universal. Aquele aclamado em prosa e verso como o maior escritor de todos os tempos. Aquele a quem Victor Hugo reputava como o maior criador depois de Deus. Aquele a quem Harold Bloom, crítico literário norte-americano ainda em atividade, considera não só o centro do cânone ocidental, mas o próprio inventor da ideia que hoje se tem a respeito do ser humano. Em suma, o mais indispensável e incontornável dos autores, aquele a partir do qual todos os outros deveriam ser julgados – mesmo os que vieram antes dele.
Ainda que tido e havido como o suprassumo da sofisticação artística, o protótipo daquilo que se poderia qualificar de “alta cultura”, deve-se ressaltar, contudo, que boa parte da obra de Shakespeare foi construída sob inspiração da chamada cultura popular. Seu teatro, por mais que hoje se afigure como “acadêmico” e “clássico”, nasceu de um sujeito que não teve uma educação esmerada, não era nobre e não escrevia para a nobreza, pelo menos não especificamente. Se existe um traço marcante do teatro elisabetano, e também do “século de ouro” espanhol, é seu caráter popular, seja na absorção de elementos peculiares às camadas mais baixas da população, economicamente falando, seja na escrita voltada para a diversão dessas mesmas camadas.
 
Cordelia na Corte do Rei Lear, por John Gilbert, 1873 – Towneley Hall, Burnley, UK
Exemplos dessa assimilação empreendida por Shakespeare do folclore de sua terra natal pululam em boa parte das 39 peças que deixou. Alguns, de acordo Aimara da Cunha Resende, professora aposentada da UFMG, em um texto chamado Entre Nobres e Aldeões, podem ser encontrados em obras insuspeitadas, como O Rei Lear e Romeu e Julieta, ambas normalmente incluídas na categoria “tragédia”, a quintessência do gênero erudito em termos dramatúrgicos. Na primeira, por intermédio da personagem de Edgar, pode-se antever a figura folk de Tom o’Bedlam, um tipo marginal e lunático muito comum no imaginário da Inglaterra medieval. Na segunda, por intermédio da personagem da ama, configurada à maneira de uma Mother Bunch, figura típica da literatura popular inglesa, as chamadas “histórias agradáveis”. Essas histórias, impressas em livrinhos que nos tempos de Shakespeare eram vendidos em feiras, faziam a delícia das jovens casadoiras, que no tipo excêntrico de Mother Bunch descobriam conselhos e lições sexuais. Isso sem falar de peças como Sonhos de uma Noite de Verão e A Tempestade, nas quais as mais caras tradições pagãs de origem normanda e saxônica extravasam quaisquer limites. E o que dizer de Otelo, tragédia cujas conexões com a commedia dell’arte já foram apontadas por críticos e comentadores da dramaturgia shakespeariana, inclusive surpreendendo em Iago sinais arlequinescos?
 
Otelo e Desdêmona, por Muñoz Degrain, 1881 – Museu do Chiado, Lisboa
Em que pese a obra de Shakespeare ter sido, ao longo dos anos, “cooptada” pelas classes mais favorecidas, servindo como emblema de distinção intelectual e social, a mesma visão classista que hoje a venera, um dia já se voltou contra ela. Não exatamente contra a obra, vale esclarecer, mas contra seu autor, no tocante às suspeitas, levantadas desde o século XIX, quanto à autoria das peças e dos poemas shakespearianos. Salvo engano, tudo começou quando, em 1856, uma norte-americana chamada Delia Bacon, que se dizia descendente do filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626), atribuiu a ele a composição desses textos. A partir de então, já apareceram mais de cinquenta candidatos ao título de poeta maior do teatro ocidental. A alegação em favor de cada um deles é quase sempre a mesma: Shakespeare teria sido apenas um factótum, isto é, alguém que emprestava seu nome a outrem que não desejava aparecer, provavelmente por motivos políticos. Por detrás dessas desconfianças, que nenhum estudioso de mérito jamais levou a sério, se verificaria um indefectível preconceito de classe, que poderia ser resumido pela seguinte pergunta: como um sujeito que jamais frequentou uma universidade, um simples “homem de teatro” que, ainda por cima, era plebeu da cabeça aos pés, teria conseguido produzir obras de tamanha envergadura estética?
Hamlet e Horácio no Cemitério, Eugène Delacroix, 1839 – Louvre, Paris
Por mais que se deva ler e reler suas peças sempre, uma fruição mais completa delas só se dará, de fato, pela via da encenação, uma vez que a dramaturgia é e sempre será um gênero literário cindido, “abortado”, que só adquire sentido pleno mesmo no palco. Isso, é claro, tomando-se como parâmetro uma “boa encenação”, pois um Shakespeare mal montado haverá sempre de parecer, por incrível que pareça, uma piada de mau gosto. Nas palavras de outro grande dramaturgo elisabetano, Ben Johnson, autor que prefaciou a primeira coletânea das peças de Shakespeare (1623), onde se lê: “Ele não pertencia ao seu tempo, mas a todos os tempos.”

William Shakespeare

*Stratford-upon-Avon, 23 de abril de 1564
 
 
 

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