Um Maquiavel fora, mas nem tanto, da filosofia política

por Rodrigo Morais Leite

“Em todas as coisas humanas,
quando se examinam de perto,
demonstra-se que não se pode afastar os obstáculos
sem que deles surjam outros.”

Maquiavel, O Príncipe

Maquiavel, pintado por Santi de Tito, no séc. XVI

Maquiavel não foi um homem de sorte. No auge de sua carreira diplomática, quando era o segundo chanceler da República de Florença, foi deposto de seu tão amado cargo devido ao levante que restabeleceu o governo dos Médici, em 1512. Pouco tempo depois, ao ser acusado injustamente de conspiração contra os novos governantes, foi preso e torturado. Mesmo inocentado das acusações que lhe pesavam, acabou banido de sua amada cidade. Confinado em uma casa de campo em San Casciano, seu exílio duraria sete anos e só seria suspenso em 1520, quando Júlio de Médici o contratou como historiador da República. Como eu gosto sempre de dizer, azar dele, sorte nossa, pois foi nesse período de ostracismo que Maquiavel compôs a maior parte de sua monumental obra, dentre elas aquela que pode ser considerada, praticamente sem ressalvas, a melhor comédia italiana do século XVI: A Mandrágora, escrita, por desfastio, em 1518.

Ilustração da planta Mandrágora, no Tacuinum Sanitatis, de 1474

A história da peça, que se passa na Florença de 1504, gira em torno de Calímaco, um estudante que, ao voltar de Paris, apaixona-se perdidamente por Lucrécia, mulher casada com um velho e rico advogado (Messer Nícia). Não bastasse semelhante impedimento, ela seria ainda por cima devota e tida como virtuosa (ou seja, fiel). Para atingir seu objetivo, Calímaco se mostra capaz de mover céus e infernos, arregimentando em prol de sua causa uma gama variada de personagens, que vão desde o amigo Ligúrio até a mãe da pretendida e seu padre confessor. Sabendo que o casal não conseguia ter filhos, e sofria por isso, arma-se o seguinte embuste: Calímaco seria apresentado a Messer Nícia como um grande médico francês, notório devido às descobertas que realizou sobre as virtudes da fertilidade em uma raiz chamada mandrágora, com a qual conseguiu manipular uma poção infalível. Contudo, o falso médico adverte o marido da necessidade de algumas precauções, pois o primeiro homem a ter contato sexual com a mulher que ingeriu a poção absorveria o veneno e morreria em oito dias. Messer Nícia hesita, claro, preocupado com a própria vida, mas a resposta de Calímaco já estava preparada de antemão: na primeira noite o esposo deveria ser substituído por um vagabundo qualquer, a quem ninguém daria pela falta e não seria difícil de conseguir. Adivinhem quem assumiria o papel de vagabundo, novamente disfarçado?

Adaptação d’A Mandrágora para o cinema, por Alberto Lattuada, 1965

Ingênuo e desesperado para ser pai, o marido cai fácil na conversa do enamorado. Mas o verdadeiro problema ainda estava por vir: convencer a recatada esposa. Neste expediente encontra-se toda a graça e toda a perspicácia da crítica de Maquiavel à sociedade de seu tempo, em especial no que concerne aos costumes, isto é, à relação dos homens entre si. Diante das conveniências, sejam elas de esperança pela preservação da linhagem familiar (no caso da mãe de Lucrécia), sejam elas meramente financeiras (no caso do padre confessor), nem os mais convictos postulados morais se sustentam. A prova cabal disso se encontra na última cena da peça, quando Lucrécia, uma vez consumado o ato, reconhece Calímaco no vagabundo disfarçado e lhe diz simplesmente o seguinte:

“Desde que a tua astúcia, a estultice do meu marido, o simplismo de minha mãe e a malandragem do meu confessor me levaram a fazer o que, por minha vontade, nunca teria feito… Eu te aceito como senhor, dono e guia; tu serás o meu pai, o meu defensor e quero que tu sejas todo o meu bem… E aquele que meu marido quis me tivesse por uma noite, eu desejo tê-lo para sempre… e ele poderá vir e ficar comigo, sem suspeita alguma, quando quiser de agora em diante.”

Rosanna Schiaffino, La Mandragola, 1965

Além da obra em debate, Maquiavel escreveu outras duas comédias nos tempos de exílio (Andria, em 1517, e Clizia, em 1520), todas inspiradas em autores da comédia latina (Plauto e Terêncio), clássicos redescobertos e revalorizados no período renascentista. Peças cômicas como A Mandrágora, juntamente com outras escritas por dramaturgos italianos como Ariosto e Arentino, ajudaram a consolidar o modelo do que se costuma designar de “alta comédia”, configurado mais ou menos em oposição à commedia dell’arte. A primeira se caracterizaria pelo seu cunho eminentemente literário, ao passo que a segunda seria o arquétipo por excelência da comédia visual, popular, considerada, por isso mesmo, “baixa”. Embora Maquiavel tenha emprestado ao teatro uma parte mínima do seu extraordinário talento de pensador político, ressalte-se que A Mandrágora, enquanto obra dramática, vale por si e se explica plenamente nos limites de sua própria linguagem. Todavia, não se pode deixar de notar certos pontos de contato existentes entre ela e o restante da obra de Maquiavel, especialmente com O Príncipe, a mais famosa de todas e escrita poucos anos antes. Até certo ponto, A Mandrágora poderia ser interpretada como uma alegoria a ilustrar ficcionalmente algumas ideias presentes em O Príncipe. Nesse sentido, ela se distinguiria, entre outras coisas, como uma “peça de tese”, ou seja, uma peça que encerra uma determinada premissa filosófica.

Para concretizar sua paixão por Lucrécia, não há escrúpulo capaz de fazer com que Calímaco desista do projeto, ainda que, para tanto, fosse necessário humilhar um homem e, possivelmente, desonrar uma mulher. Isso tem nome: amoralismo. O mesmo amoralismo tão presente naquela famosa sentença que, embora Maquiavel jamais a tenha escrito, atravessa sub-repticiamente O Príncipe de cabo a rabo: “Os fins justificam os meios.” Mas nem tudo é tão simples quanto parece. Sendo A Madrágora uma obra-prima, ela comporta diferentes interpretações. Um outro ponto de vista possível para se abordar a peça, que não exclui necessariamente o anterior, nela percebe um caráter deveras moralizante, expresso na oposição estabelecida entre a concupiscência exacerbada de Calímaco e a impotência velada de Messer Nícia. A sucesso absoluto do primeiro em sua empreitada, que só poderia resultar na desgraça do segundo (mesmo que ignorada), seria um sinal da aversão do autor ao decantado homoerotismo da arte florentina, influência, é claro, do paganismo greco-romano, cujo auge teria se dado no governo de Lorenzo de Médici. Certas obras, como o Davi (1444-46) de Donatello, ou o Baco (1497) de Michelangelo, seriam exemplos bastante sintomáticos dessa tendência. Contra ela, Maquiavel teria esboçado a figura de Calímaco, um herói que não se acanha frente à possibilidade de impor sua virilidade. Diante de certos hábitos encarados pelo grande pensador como sinais de degenerescência, contrapõe-se em sua peça a afirmação não só da masculinidade como, também, da própria natureza, que deve seguir seu curso inexorável por meio da perpetuação da espécie. Como se pode ver, não foi à toa que Maquiavel ganhou o epíteto de maquiavélico, se é que me entendem.

Por Rodrigo Morais

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