Décio de Almeida Prado: o centenário de um pensador do teatro brasileiro
por Rodrigo Morais Leite
Há cem anos nascia Décio de Almeida Prado, intelectual normalmente apontado como o principal pensador do teatro brasileiro. Na qualidade de crítico de espetáculos e historiador, sua importância nessa área equivaleria, como sempre se afirma, à de Antonio Candido para a literatura e à de Paulo Emílio Salles Gomes para o cinema, lembrando que todos eles começaram a carreira juntos, ao criarem, em 1941, a revista Clima.
Terminada sua experiência na revista, extinta em 1944, Décio de Almeida Prado se tornou, a partir de 1946, crítico teatral do jornal O Estado de S. Paulo, função que exerceu durante vinte e dois anos. Após abandonar a crítica, passou a se dedicar exclusivamente à carreira acadêmica, como professor e pesquisador da USP (Universidade de São Paulo). Em linhas gerais, seria esse o resumo de sua trajetória profissional, sem dúvida uma das mais brilhantes de sua geração, a primeira egressa do ensino universitário no Brasil – surgido apenas em 1934 com a criação, exatamente, da USP.
Mas isso não é tudo. Outras facetas de sua inserção no campo cultural poderiam ser lembradas, como, por exemplo, a criação do GUT (Grupo Universitário de Teatro), atuante de 1943 a 1948 e que, posteriormente, ao se fundir com grupos aparentados, daria origem ao TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), a mais importante companhia teatral do país na década de 1950. Aquela que, juntamente com o TPA (Teatro Popular de Arte), do Rio de Janeiro, seria a grande responsável pela modernização da cena nacional em nível profissional.
Não bastasse tudo isso, Décio de Almeida Prado também se destacou como editor do Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, um dos mais significativos cadernos culturais da história da imprensa brasileira, cujo projeto tencionava promover uma união entre o mundo acadêmico e o jornalismo. Nesse cargo Prado permaneceu de 1956 a 1967, o período áureo da publicação.
Em se tratando, portanto, de uma carreira intelectual polivalente, seria impossível analisá-la aqui em toda a sua extensão, sob o risco de não se abordar a contento nenhum dos aspectos que a compõem. Sendo assim, para que se possa aquilatar com alguma congruência o papel exercido por Prado no âmbito da cultura nacional, o presente artigo se restringirá às atividades consideradas mais relevantes, que são, com certeza, as de crítico e historiador do teatro brasileiro. Atividades, diga-se de passagem, antes complementares do que excludentes.
No campo da crítica, Décio de Almeida Prado costuma ser apontado como um precursor, por ter sido o primeiro crítico teatral especializado no Brasil, diferenciando-se dos antigos jornalistas e intelectuais polígrafos que, antes dele, exerceram o ofício. Além disso, ele também seria, nos quadros da nossa história, o primeiro crítico teatral caracteristicamente moderno, ou seja, mais ou menos pautado nos seguintes princípios:
- Condenação ao vedetismo encarnado na figura do primeiro-ator ou da primeira-atriz, ao redor dos quais o restante do elenco e, por extensão, o espetáculo como um todo deveria girar.
- Defesa da noção de ensemble, que pressupõe a formação, dentro das companhias, de elencos estáveis e homogêneos, integrados por atores e atrizes polivalentes, capazes de interpretar múltiplos papéis – em oposição ao antigo sistema conhecido como emploi.
- Condenação de certa teatralidade, típica do século XIX e até de épocas mais remotas, baseada em códigos rígidos e imutáveis (estereótipos) que determinavam desde a maneira como os atores deveriam exteriorizar algumas emoções até onde deveriam se postar no palco.
- Valorização da arte da encenação e, por conseguinte, do ofício do encenador, independente da gradação que ela pudesse atingir: em alguns casos bastante elevada, em outros, nem tanto.
- Desprezo pelo drama burguês – especialmente na sua versão mais radical, a da chamada peça benfeita – centrado em problemas de âmbito privado e conflitos de ordem intersubjetiva.
Embora as menções que atestam o pioneirismo de Prado não estejam incorretas, elas poderiam, contudo, ser um pouco relativizadas, na medida em que, entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, alguns nomes exerceram com brilho, ou se não com regularidade, a crítica de teatro, como Machado de Assis, Artur Azevedo, Oscar Pederneiras, Mário Nunes e outros. No tocante à modernidade de sua crítica, nunca é demais recordar que, pelo menos vinte anos antes de Prado iniciar a carreira, outro crítico já militava na imprensa em prol da modernização do teatro brasileiro: o escritor Antônio de Alcântara Machado, um dos próceres do modernismo paulista.
Se, por acaso, as críticas de Alcântara Machado não repercutiram em sua época, ao contrário do que sucedeu com as de Prado, isso não tira a precedência do primeiro sobre o segundo. Aliás, vale destacar, graças às pesquisas realizadas por Cecília de Lara, que se debruçou sobre essa produção do autor de Brás, Bexiga e Barra Funda (1927), certas ideias defendidas pelo escritor chegaram inclusive a influenciar o pensamento de Prado, como demonstram alguns trabalhos historiográficos seus que tratam do modernismo no teatro brasileiro.
De todo modo, enquanto um pregou no deserto, o outro, inserido num ambiente teatral mais propício à modernização, acabou se tornando o “porta-voz” de uma geração, precisamente aquela que, entre as décadas de quarenta e sessenta do século passado, tomou para si a responsabilidade de implementar semelhante projeto. Este, apesar de se coadunar com alguns tópicos consensuais, como os relacionados acima, possuía inúmeras peculiaridades, dentre as quais se deve ressaltar sua estreita ligação com o modernismo teatral francês, aquele personificado na poderosa e polêmica figura de Jacques Copeau.
Encenador, crítico e teórico, Copeau foi o responsável pela fundação, em 1913, do Vieux Colombier, companhia que se transformou, com o passar dos anos, no epicentro da renovação teatral francesa. A ascendência de seus conceitos e de sua prática nos palcos brasileiros foi enorme, podendo ser identificada em grupos remotos no tempo como a Batalha da Quimera (1922), o Teatro de Brinquedo (1927) e Os Comediantes (1938). No caso de Décio de Almeida Prado, o contato com as ideias de Copeau precedeu em alguns anos sua estreia como crítico: ao passar, em 1939, uma temporada na França, ele teria assistido a uma palestra do encenador. Posteriormente, ao publicar suas críticas iniciais para a revista Clima, Prado se depararia com a obra Reflexões do Ator (1938), o primeiro livro que leu sobre teoria teatral, cujo autor, Louis Jouvet, destacou-se como o principal discípulo de Copeau no teatro francês.
Desse momento em diante até o fim de sua carreira como crítico, Prado se manteve bastante fiel aos preceitos apreendidos com a dupla Copeau-Jouvet, só relativizando-os, ainda assim parcialmente, quando, na passagem das décadas de 1950 e 60, outras referências fundamentais do teatro moderno começaram a despontar na cena brasileira (Constantin Stanislavski, Erwin Piscator, e, especialmente, Bertolt Brecht).
De Jacques Copeau o crítico paulista herdou, principalmente, a noção do teatro como arte na qual “o verbo se faz carne”, ou seja, na qual todos os elementos que compõem a cena (atores, cenários, luzes, figurinos) se submetem à missão de ilustrar e traduzir cenicamente um texto pré-concebido. O teatro seria, por conseguinte, uma extensão cênica da literatura, a chamada literatura dramática. Dela tudo provém. Ainda que uma peça não possa ser a totalidade de um espetáculo, ela é o seu germe, sem o qual a cena, sozinha, se tornaria estéril. Conceitualmente, à semelhante visão da arte teatral se costuma dar o nome de “textocentrismo”.
Na obra de Décio de Almeida Prado, inúmeras são as implicações decorrentes desse textocentrismo de origem copeauniana. Uma delas, talvez a mais importante para se destacar aqui, relaciona-se à militância do intelectual na defesa do autor nacional, no sentido de compreender que o processo de modernização teatral deveria culminar no aparecimento de novos dramaturgos. Ou, como diria Copeau, no aparecimento do “poeta dramático”. Com efeito, uma das funções atribuídas a esse processo seria deslocar o “eixo” ao redor do qual o teatro brasileiro girava, saindo da alçada do primeiro-ator e da vedete para o campo da dramaturgia. Observando-o em retrospecto, se pode afirmar que ele, no todo, foi bem sucedido, se se pensar no número considerável de dramaturgos que então se revelaram: Nelson Rodrigues, Jorge Andrade, Ariano Suassuna, Dias Gomes, Gianfrancesco Guarnieri, Vianinha, Plínio Marcos, para ficar somente nos mais relevantes.
O fato de Prado ter expressado, ao longo de sua carreira, censuras contundentes a alguns desses nomes não contradiz o que foi afirmado, antes pelo contrário, pois isso só revela a enorme preocupação que ele tinha com a dramaturgia, sempre se mostrando disposto a contribuir, da maneira que podia, com a sua elevação. De resto, enquanto a modernização do teatro brasileiro se pautou por esses parâmetros, em certa medida comungados pela geração de Prado, ele foi sem dúvida o crítico mais sintonizado com sua época, o melhor representante do chamado zeitgeist (espírito do tempo), por mais que se tenham feito e se façam reservas em relação ao modelo tomado.
Com a introdução, em nosso meio teatral, de teorias que escapavam à órbita textocêntrica de Copeau, conforme se mencionou, não há dúvida de que essa harmonia entre o teatro visto e o teatro idealizado por Prado se quebrou, dando início a uma série de “ruídos” que, em última instância, o afastaram da crítica. Um marco desse desajuste, com certeza, foi a encenação de O Rei da Vela (1967), realizada por José Celso Martinez Corrêa a partir do texto de Oswald de Andrade. Nessa histórica montagem, Zé Celso propôs uma escritura cênica (relativamente) autônoma em relação à peça, algo que acabou desagradando o crítico, ainda que, no todo, ele tenha elogiado o espetáculo. No ano seguinte à estreia de O Rei da Vela, desanimado com os rumos tomados pelo teatro brasileiro, que se voltava cada vez mais à encenação, Décio de Almeida Prado abandonou o ofício de crítico.
Ao se doutorar, em 1971, com uma tese brilhante sobre o ator João Caetano, Prado começou, de fato, sua carreira acadêmica, destacando-se, a partir de então, como ensaísta, historiador e orientador. Nessa condição, mesmo revendo algumas de suas ponderações dos tempos de crítico (Bertolt Brecht e Nelson Rodrigues seriam as mais evidentes), seus pressupostos teóricos se mantiveram basicamente os mesmos, o que resultou numa historiografia construída pela perspectiva do drama, nos muitos aspectos que o conceito comporta.
Partindo desse ponto de vista, que concebe o teatro como arte dramática, Prado examinou praticamente todo o passado cênico nacional, concentrando-se, todavia, mais em alguns momentos do que em outros. Nos instantes, por assim dizer, mais “literários”, como o romantismo e o realismo, estéticas tributárias do drama, suas análises se elevam, correspondendo ao que existe de melhor na historiografia teatral brasileira em termos de profundidade exegética e rigor documental. Quando, por outro lado, o foco são os períodos em que prevaleceram gêneros como a opereta e o teatro de revista, hegemônicos no final do séc. XIX e ancorados, acima de tudo, na espetaculosidade, as interpretações de Prado se mostram mais suscetíveis a restrições, algo de que dão conta alguns pesquisadores contemporâneos.
No campo da teoria da história, o pensamento de Décio de Almeida Prado mantém muitos pontos de contato com o de Antonio Candido, especialmente na adoção do conceito de formação, algo já observado e comentado em estudos sobre o “Grupo Clima”. Resumindo ao máximo, no geral tanto a historiografia de um como a do outro são caracteristicamente modernas, adeptas, portanto, de um discurso totalizante, atrelado à ideia da “grande narrativa”, na qual a história se apresenta como um “sujeito universal” e como uma instância possuidora de um sentido fundamental. Tais noções, não é difícil perceber, costumam ser rejeitadas pela consciência dita pós-moderna, dotada de uma subjetividade propensa a decompor o sentido da história e pulverizar a “grande narrativa”.
Com base em tais observações, e levando-se em conta que o teatro contemporâneo é muito mais inclinado à cena do que à dramaturgia, taxar o intelectual paulista de conservador, seja do ponto de vista estético-teatral, seja do ponto de vista historiográfico, tornou-se algo comum hoje em dia. Ainda que tais reservas não estejam desprovidas de razão, é necessário pontuar algo primordial: ele seria conservador à luz do presente, cujas premissas teóricas e filosóficas são consideravelmente diferentes às de seu tempo. Tomado em sua historicidade, isto é, nos termos propostos pela época em que viveu, Décio de Almeida Prado foi um crítico e historiador revolucionário, criador de uma obra que é, ou deveria ser, a porta de entrada para qualquer pesquisador da área. Como crítico, contribuiu ativamente com sua militância para a modernização do teatro brasileiro, independentemente do viés assumido; como historiador, sistematizou em moldes universitários a ensaística teatral brasileira, criando uma historiografia muito coerente dentro daquilo a que se propõe. Por tudo isso, ele é merecedor de todas as homenagens pelo seu centenário, que não pode passar em branco.
Por Rodrigo Morais
Coluna: Teatro
PS: O presente artigo é, a seu modo, um resumo bem simplificado de alguns temas desenvolvidos em uma tese de doutoramento, a ser defendida no ano que vem, chamada Décio de Almeida Prado e a Historiografia Teatral Brasileira (título provisório), realizada na Unesp sob orientação do prof. Alexandre Mate.
*Crédito da foto de capa: Sergio Tomisaki/Folhapress