Charlie Hebdo e a intolerância de quem não entende a piada

por Homero Nunes
Tem gente que se leva a sério demais. O ataque ao Charlie Hebdo é o exemplo extremo do comportamento de patrulha, de juiz, de guardião das ideologias e ideias prontas. Um comportamento que não suporta a controvérsia, que não respeita ideias contrárias, que aponta o dedo para desqualificar o oponente, imbuindo-se das melhores e mais divinas intenções.
 
 
Ironias, sarcasmos, humor, figuras de linguagem e contradições não são para compreensão geral. Tem gente que não entende as coisas, que se leva a sério demais. E pior, reage com ataques, ofensas e violência. Escondendo-se atrás da discordância, intolerantes se esquivam da argumentação, da discussão de ideias, da controvérsia intelectual e partem para o ataque, franco e direto, como se desqualificar o outro por si só já valesse para ganhar a luta. Talvez estejam mesmo ganhando.
O hebdomadário francês de humor, Charlie Hebdo, foi alvo de um ataque a tiros que matou 12 pessoas por ter publicado uma charge que satirizava o profeta Maomé. Homens mascarados, armados com Kalashnikovs, atiraram contra a redação para matar aqueles que ousaram fazer humor com aquilo que levam a sério. A sério demais. Um deboche num veículo incorreto que custou a vida 12 pessoas.
O Charlie Hebdo costuma tirar sarro de muita coisa, sobretudo política. Mas não deixa escapar o que está em pauta na mídia mundial. Qualquer coisa pode ser motivo de zombaria. Vira e mexe é processado por alguém que se sentiu ridicularizado ou humilhado por lá. A Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana, por exemplo, já desceu dos tamancos algumas vezes nos tribunais franceses. Contudo, nenhum cristão chegou atirando por causa das charges da Virgem, de Deus, pai, filho e espírito santo. Ainda. Isso é coisa de quem se leva mais a sério, como um escolhido para a missão de limpar o mundo de quem ri de si mesmo e das coisas da vida.
 
 
A Igreja mesmo já queimou vivo quem discordava dela. Na Idade Média, qualquer homem que pensasse diferente ou mulher que apenas pensasse podia ir para a fogueira. Mas o tempo passou: Renascimento, filosofia, ciência, progresso e civilização poliram a instituição na paz e na tolerância. Pelo menos um tanto. Hoje, há quem diga que o mundo islâmico ainda está em trevas medievais. Contudo, as trevas estão em toda parte, naqueles que não aceitam a diferença, que se colocam como defensores de ideias prontas. O problema é quando um deles pega um AK47 e sai fazendo sua justiça torta. Foi o que aconteceu em Paris.
Das origens nos anos 70, sumindo e aparecendo, o Charlie é publicado em Paris com periodicidade desde 1992. Com cartunistas importantes, a nata do desenho crítico de humor, costuma levar ao público o assunto do momento sob a acidez do deboche, de um humor muito incorreto. Controvérsias e debates são comuns e os editores apostam nas polêmicas como estratégia para elevar as vendas. Quem compra gosta de rir de coisas sérias e aumentar a carga crítica de suas opiniões. Um tabloide pra lá de incorreto.
Implacável, anárquico, as armas do Charlie Hebdo são os quadrinhos, as charges, os textos rápidos e corrosivos. A piada. Seja tragédia ou derrota, desgraça ou gafe, os traços da revista cairão em cima, criando imediatamente uma piada sobre o assunto. Não apenas fazer graça com as coisas, mas desconstruí-las, rir da própria desgraça, usar o humor para tratar de temas importantes e criticar Deus e o mundo.
Quando um jornal dinamarquês criou polêmica ao publicar uma charge de Maomé, o Hebdo logo se pôs a republicá-la, em apoio. Começou aí a querela com os radicais islâmicos. Em 2011, publicaram uma charge do Maomé dizendo: “cem chibatadas se você não morrer de rir”. Pronto! Foi o suficiente para alguém jogar um “Molotov” na redação. Além disso, um monte de gente que se leva a sério demais veio condenar a publicação e choveram ameaças. Ninguém arredou pé e o Charlie se defendeu pelo direito de rir das coisas sérias, de zombar, de livremente expressar suas ideias com humor.
 
 
Deu no que doeu. Inacreditável o que a ignorância religiosa pode fazer. Religião não une, não agrega, divide. Como diria o prêmio Nobel de Física, de 1979, Steven Weinberg: “Pessoas boas fazem o bem, pessoas ruins fazem o mal, mas para que pessoas boas façam o mal, é preciso religião”. Acrescentaria que é preciso se levar a sério demais.
Apegados em interpretações e ideologias, muitos se colocam como paladinos de sua religião, ora para converter fiéis, ora para condenar os impuros. Tudo é visto, lido, analisado com base no arcabouço de ideias que seguem à risca. Ainda mais se seus líderes carismáticos assim decretarem. Gente que se sente na missão de recriar o mundo segundo suas crenças, em detrimento de todas as outras.
Radicais e fundamentalistas se multiplicam até mesmo entre os jovens ocidentais premiados com a liberdade extrema. Tanta liberdade que abrem mão dela para se meterem no Estado Islâmico ou coisa pior. Contudo, para além da ignorância e da intolerância que dá tiros em jornalistas, o comportamento de juiz se alastra por aí mesmo esvaziado da religião, evaporada nas relações cotidianas.
 
O ocorrido na redação do Charlie Hebdo em Paris é exemplo extremo do que no mundo hoje se propaga como comportamento de patrulha. Não se aceita a diferença, não se discute com quem pensa diferente. Vigilância. O ataque é a melhor defesa para quem não tem argumentos ou se recusa a usar a inteligência para mudar de opinião. O negócio é desqualificar o outro como infiel ou moralista, coxinha ou reaça, seja qual extremo for.
Quando se fala de um extremista islâmico com um Kalashnikov nas mãos, todos parecem se entristecer com o resultado (e põe triste nisso), mas muitos destes costumam apontar seus juízos contra quaisquer ideias diferentes das suas. O comportamento de juiz, que julga a liberdade expressão do outro, condenando-o sem argumentos, apontando-lhe o dedo para desqualifica-lo, é ainda usado por quem se diz defensor das liberdades, das diferenças.
Não só os fundamentalistas religiosos ou idealistas partidários, mas também os paladinos da liberdade e defensores dos fracos e oprimidos vivem a caçar quaisquer opiniões diferentes pelo processo da desqualificação do oponente. Aqui mesmo na web a “patrulha do politicamente correto” costuma fazer das suas. Condenando sumariamente qualquer um que pense ou se expresse diferente, em nome de suas nobres e sagradas crenças e visões de mundo, escusam-se do argumento, fogem do debate, não se dão ao trabalho de colocar o pensamento para funcionar. Atacam, ofendem.
Não há comparação entre essas picuinhas da internet com o massacre em Paris. Longe disso. O que aconteceu lá foi a barbárie. Mas o que o exemplo do ataque ao Charlie Hebdo pode levar a refletir é sobre a intolerância de quem se acha do lado da verdade, ungido, capaz de definir como devem ser as coisas para todos. Um texto diferente, um desenho, uma expressão de pensamento é o suficiente para que alguém caia matando. Literalmente.
 
Finalmente, como resumo de tudo que foi dito acima, em profunda tristeza pelos cartunistas e jornalistas do Charlie Hebdo, em repúdio aos ataques covardes de quem se leva a sério demais, uma frase de um outro mestre do humor, também cartunista e jornalista, Millôr Fernandes:

 

“Eu não quero viver num mundo em que não possa fazer uma piada de mau gosto.”
 
 

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