Escrever sobre João Gilberto não é tarefa das mais fáceis. Quem se dispõe a fazê-lo, de imediato se depara com a seguinte questão: de que João Gilberto tratar? Do cantor e violonista que dividiu a história da Música Popular Brasileira em antes e depois dele, ou da persona pública, tão estigmatizada, entre outros motivos, devido à sua notória misantropia? Embora a “imortalidade” desse baiano singular se deva à sua música, hoje um patrimônio universal, ninguém há de duvidar ser muito mais divertido falar das inúmeras manias, extravagâncias, idiossincrasias e invencionices ligadas à sua vida pessoal. Discorrer sobre a revolucionária batida de violão desenvolvida por ele, ou sobre o canto à Chet Baker que, associado ao instrumento, criou uma coisa única no âmbito da canção popular, seria em tese mais nobre, claro. Todavia, o anedotário joãogilbertiano tornou-se algo tão lendário, tão rico de histórias, no mínimo, sui generis, que, se não sobrepujou a obra musical, igualou-se a ela em grandeza. Se falar do trabalho de João Gilberto é falar de música sofisticada, falar de sua vida privada é fazer fofoca sofisticada. E quando a lenda é maior que o homem, já dizia aquele grande cineasta norte-americano, que se imprima a lenda, certo? Então, vamos a ela.
João Gilberto nasceu em Juazeiro (BA) no ano de 1931. Disso quase todo mundo sabe. O que poucos sabem é que sua formação musical se deu na rua, na frente de um amplificador pendurado em um poste de luz, o amplificador do seu Emicles, que irradiava, em alto e bom som, para que toda a cidade ouvisse, os grandes sucessos da época. Aos catorze anos ganhou o primeiro violão, de um padrinho boêmio. Aprendeu a tocá-lo sozinho, pelo Método Elementar Turuna. Com dezenove, depois de trabalhar esporadicamente com música na terra natal, participando de orquestras locais, chegou ao Rio de Janeiro sonhando engatar uma carreira artística. Fracassou de maneira retumbante. Embora tenha trabalhado algum tempo como crooner de um conjunto vocal chamado Garotos da Lua, suas constantes faltas e atrasos fizeram com que fosse demitido. Em 1951, por intermédio dos integrantes do grupo, conheceu a maconha, tornando-se, desde então, simpatizante da erva. No início, quando ainda tinha algum dinheiro, comprava a droga no bairro da Lapa, dos garotos que vendiam cigarros em tabuleiros. Depois, quando a situação financeira apertou, passou a cultivá-la na casa de um amigo, deixando para a esposa deste a tarefa de regar a plantinha. Em tempo: ela não sabia do que se tratava. De todo modo, desde então João Gilberto tornou-se conhecido entre os músicos pelo carinhoso e discreto apelido de Zé Maconha.
Como, nesse período de inferno astral, a grana andava sempre curta, João Gilberto se virava como podia, morando de favor na casa de amigos. E como ele se aproveitou desse estratagema! Não foram poucos os abnegados que, seduzidos pela lábia do baiano, tiveram que experimentar as dores e as delícias de se dividir um apartamento com ele. O roteiro era sempre o mesmo: ele chegava, dizendo que ficaria provisoriamente, ia ficando, ficando, até ser expulso. Pudera: além de não contribuir em nada com as despesas domésticas, João Gilberto também não ajudava na limpeza, não obedecia a nenhuma rotina e, ainda por cima, não se acanhava em levar amigos seus para a residência da ocasião. Ademais, pedia dinheiro emprestado aos seus anfitriões e, suprema ousadia para a época, quando estava “em casa”, entre um e outro acorde, davas suas baforadas – ou, melhor seria dizer, os seus tapinhas. Recusando-se terminantemente a trabalhar em qualquer coisa que não fosse com música, sem dinheiro e sem hospedeiros, em 1955 João Gilberto se viu obrigado a sair do Rio de Janeiro. Iniciava-se um período sabático que duraria dois anos, no qual o músico, depois de percorrer um périplo por cidades como Porto Alegre, Diamantina e a Juazeiro natal, voltaria ao Rio com uma “carta na manga”: uma certa batida de violão destinada a revolucionar a história da música popular do século XX.
Consta que a batida foi criada no banheiro da casa de sua irmã Dadainha, em Diamantina, onde João Gilberto passou uma temporada de oito meses. A acústica, como não poderia deixar de ser, foi o que chamou a atenção do músico para aquele aposento específico. Se ele ainda existir, deveria ser tombado pelo poder público. De volta ao Rio de Janeiro, sempre sem dinheiro e sempre se alojando na casa de amigos, João Gilberto imediatamente procurou divulgar o que criara no exílio, mostrando sua batida e canto modernos a todo mundo que se dispusesse a ouvi-los. Um deles foi Tom Jobim, que, depois de mexer os seus pauzinhos, conseguiu convencer a gravadora Odeon a bancar um álbum solo de João Gilberto. O compacto desse álbum, lançado em 1958, continha Bim-bom de um lado e, do outro, Chega de Saudade. Seu impacto, em especial da última canção, todo mundo mais ou menos bem informado tem conhecimento. O que talvez poucos saibam é que, para gravá-lo, o baianinho de Juazeiro demandou uma semana de trabalho em estúdio, no decorrer da qual ele conseguiu enlouquecer os músicos da orquestra que o acompanhavam, os técnicos de som e, por último, o próprio Tom Jobim, arranjador do disco. Isso para o registro de apenas duas músicas! Surgia, pela primeira vez, o tão discutido perfeccionismo joãogilbertiano, que o levou, desta feita, a chamar o “maestro soberano” primeiro de burro e depois de preguiçoso. Era o mesmo perfeccionismo que, no futuro, o levaria a abandonar shows no meio, seja por causa de um ar-condicionado que, segundo ele, estaria desafinando o violão, seja por causa do som que, segundo ele, estaria mal equalizado. Coisas, dizem, de quem tem “ouvido absoluto”, isto é, um ouvido capaz de identificar, sem esforço, qualquer tom e qualquer nota.
O pior é que nem sempre seus famosos chiliques tiveram origem nessa particularidade. Um deles, acontecido no antológico show do Carnigie Hall de 21 de novembro de 1962, o evento que deveria apresentar a Bossa Nova “ao mundo”, teve origem no vinco se sua calça, que, sempre de acordo com ele, não estaria paralelo à costura lateral. Como tocar violão desse jeito? Ou alguém passava a calça de novo, ou João Gilberto não se apresentaria no templo sagrado da música norte-americana. Resultado: enquanto esperava de cuecas dentro do camarim, coube a dona Dora Vasconcelos, então cônsul-geral do Brasil nos EUA, a tarefa de ajustar o vinco e salvar a reputação da música brasileira para todo o sempre. Histórias como essa, exemplos de uma personalidade muito peculiar, pra dizer o mínimo, não poderiam, é claro, se restringir a um espaço exíguo como este aqui do IssoCompensa. Elas mereceriam, possivelmente, uma suíte, isto é, no jargão jornalístico, o desdobramento em pelo menos mais uma postagem. Por ora, seguem os nomes de algumas obras que poderão, quem sabe, matar a curiosidade dos leitores interessados na vida (e também na obra) desse artista a um só tempo genial e genioso, com o perdão do clichê. Do jornalista Ruy Castro, dois livros são fundamentais: Chega de Saudade – A história e as histórias da Bossa Nova (1990), e A Onda que se Ergueu no Mar – Novos mergulhos na Bossa Nova (2001). Voltado somente para a música, recomenda-se o pequeno mas ótimo estudo de Zuza Homem de Mello intitulado simplesmente João Gilberto, da coleção Folha Explica (2001). Os dois primeiros são garantias de boas risadas, embora, é bom lembrar, não se restrinjam à figura em questão. O último é perfeito para quem quer entender por que João Gilberto tornou-se João Gilberto, um dos músicos populares mais respeitados do mundo. Sem nenhum exagero.
por Rodrigo Morais
Coluna Música