Beatles: os 50 anos de Rubber Soul

por Homero Nunes
por Rodrigo Morais
Pra começo de conversa: todos os álbuns dos Beatles foram revolucionários. Isso significa dizer que álbuns como Please, Please Me (1963), With the Beatles (1963) e Beatles for Sale (1964), embora ainda impregnados de puerilidade juvenil, já apresentavam, a seu tempo, uma boa dose de inovação em relação ao que havia sido produzido até então na seara do Rock. Se atualmente eles possuem menos prestígio na comparação com os demais, isso se deve à capacidade singular demonstrada pelo quarteto, ao longo de sua curta carreira, em estar sempre na “crista da onda”, ou seja, na vanguarda da música popular ocidental, consciente ou inconscientemente. Contudo, na trajetória evolutiva da banda, cujo talento criativo parecia não ter limites, se houve um momento de maior salto qualitativo entre um trabalho e outro, creio ter sido na ocasião do lançamento de Rubber Soul, que hoje completa 50 anos. Com ele os Beatles teriam atingido a plena maturidade intelectual e artística.
Tal percepção, que não é só minha, evidentemente, poderia ser explicada levando-se em conta inúmeros argumentos, todos válidos e amplamente repisados: a influência do encontro com Bob Dylan e aquele seu “cigarrinho”; a competição acirrada com os Beach Boys (e não com os Rolling Stones, ao contrário do que muita gente ainda acredita); o encantamento pela música oriental; a conquista de uma maior autonomia em relação aos ditames da indústria fonográfica etc. Tudo isso resultou numa evidente hipertrofia formal e temática, revelada na complexidade das harmonias, no cuidado com as melodias e no conteúdo das letras, que adquiriram maior densidade lírica e/ou maior sofisticação de contexto. Com efeito, mesmo não sendo o melhor álbum dos Beatles, Rubber Soul pode ser considerado, em termos históricos, o mais importante deles.
Em se tratando de um trabalho capital dos Beatles, conjunto cuja significação simbólica ultrapassa, e muito, as já amplas fronteiras da música popular, é praticamente impossível trazer, a esta altura do campeonato, alguma grande novidade factual ou mesmo interpretativa a seu respeito. Como quase todo ano há alguma efeméride ligada a um disco dos Beatles, quase todo ano um deles é objeto de curtas ou longas matérias nos cadernos culturais dos grandes jornais ou, mais recentemente, na internet. Se hoje a pauta é Rubber Soul, amanhã será Revolver (1966) e, depois, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967), até se chegar a Let it be (1970), o último a ser lançado. Na tentativa, talvez infrutífera, de sair um pouco desse ramerrão, que de resto se encontra em qualquer uma das incontáveis biografias (ou se deveria dizer hagiografias) escritas sobre a banda, proponho uma solução de compromisso: sem deixar de lado alguns dados fundamentais, procurarei aqui expressar certas impressões minhas sobre o aniversariante de hoje, no intuito de compor um texto híbrido, meio reportagem, meio crônica. Nada a ver, portanto, com crítica, vale ressaltar.
Das 14 canções de Rubber Soul, tenho particular predileção por sete, a saber: Norwegian WoodYou Won’t See MeNowhere ManMichelleGirlIf a Needed Someone e, óbvio, In My LifeTodas as outras estão naquela categoria que poderia ser assim definida: um pouco abaixo do padrão Beatles de qualidade, muito acima do padrão que hoje impera na músicapopNorwegian Wood é, claramente, uma balada à Bob Dylan, com uma letra também feita ao modo do compositor norte-americano, aparentemente alegórica mas que, em verdade, tratava de uma situação bem concreta: os casos extraconjugais de John Lennon. Norwegin Wood seguia o mesmo “filão” antes explorado por Lennon em You’ve Got to Hide Your Love Away, do LP Help, lançado alguns meses antes de Rubber Soul. Com uma diferença fundamental, é bom lembrar, que seria a utilização da cítara, aquela guitarra indiana pela qual George Harrison havia se encantado desde que a viu em uma gravação do filme Help nas Bahamas. A ideia não demoraria a inspirar outras bandas, como, por exemplo, os Rolling Stones, que no ano seguinte se valeriam do mesmo instrumento, empunhado por Brian Jones, no arranjo da canção Paint it Black.
Tomando-se como referência a lista acima referida, ou mesmo o álbum em sua totalidade, é possível afirmar que as canções (mais) de Lennon se sobressaem em relação àquelas (mais) de Paul McCartney, pelo menos do ponto de vista literário. Enquanto as do primeiro já apresentavam aquela “densidade lírica” (Girl e, principalmente, In My Life) ou aquela “sofisticação de contexto” (Nowhere Man) às quais me referi alguns parágrafos atrás, as do segundo ainda se mostravam atreladas à fase anterior, tratando de problemas amorosos (mais especificamente de seu conturbado namoro com a atriz Jane Asher). Mais novo que Lennon, McCartney se ombrearia ao parceiro em tal seara no disco seguinte, Revolver, graças a canções como Eleonor Rigby e For No One. Levando-se em conta que Rubber Soul e Revolver formariam, juntos, uma espécie de álbum duplo, a disputa entre os dois, ao fim e ao cabo, permaneceria num generoso empate. Em tempo: essa história do álbum duplo não é opinião minha, não, mas do George Harrison, e está registrada em alto e bom som no documentário Anthology, de 1994. Aliás, falando em Harrison, considero If a Needed Someone a melhor canção composta pelo quiet beatle até então, já prenunciando algumas das obras-primas posteriores – como He Comes the Sun.
Sobre In My Life, a melhor canção do LP em questão e uma das melhores da história da música popular, algumas palavrinhas à parte são necessárias. Tudo nela é tão perfeito que até o arranjo de bateria elaborado pelo Ringo consegue ser genial, com aquele chimbal batido no contratempo quase do início ao fim. A harmonia e a melodia se unem à letra em uma sintonia única e absoluta, fazendo com que o clima de saudosismo que lhe é peculiar se torne universal, ou, em outras palavras, como se a nostalgia de John Lennon pelos anos passados em Liverpool fosse também um pouco nossa, que jamais vivenciamos tal experiência. E olha que ele, à época que a escreveu, tinha apenas 25 anos! E o que dizer daquele solo de piano acelerado (alguns dizem se tratar de um cravo), inserido depois da quarta estrofe e executado por George Martin? A sensação que ele me causa é de natureza epifânica, algo portanto difícil de descrever por meio de palavras. Um êxtase auditivo seria, talvez, a expressão que mais se aproximaria dessa sensação.
Após o fim dos Beatles, em 1970, essa e outras canções assinadas como Lennon/McCartney tornaram-se alvo de controvérsias, em virtude, é claro, da questão da autoria, ou seja, em saber quem havia feito o quê em cada uma delas. Isso se sucedeu devido a dois fatores. O primeiro deles diz respeito ao acordo estabelecido entre os dois front leaders da banda, antes mesmo de a fama chegar, segundo o qual todas as canções que um compusesse, mesmo sem a participação do outro, seria assinada por ambos. O segundo tem a ver com o fato de Lennon e McCartney formarem uma parceria heterodoxa, pois, como os dois escreviam música e letra, não havia no trabalho deles aquela divisão tradicional, no âmbito da canção popular, entre quem faz a música (normalmente primeiro), e quem faz a letra, sobrepondo-a à melodia. Sendo assim, aferir a contribuição de um e de outro nas mais de cem canções assinadas pela dupla não é tarefa das mais simples, cabendo somente a eles a revelação do que é devido a cada um. Como o fim dos Beatles representou também, por um bom tempo, o fim da amizade dos dois, foi dada a largada, a partir de então, para um verdadeiro cabo de guerra entre os ex-parceiros em torno da criação das canções, especialmente as mais belas, como In My Life. Na famosa entrevista concedida à revista Playboy, de 1975, Lennon sugeriu que In My Life seria totalmente dele, com uma pequena ajuda de Paul. Posteriormente, este rebateu declarando que a melodia da canção seria obra sua e não de John.
Independente do processo criativo estabelecido por John Lennon e Paul McCartney na composição de quase todo o cancioneiro dos Beatles, assunto que exigiria uma postagem dedicada somente a ele, foi com Rubber Soul que a dupla começou a pleitear sua entrada no seleto panteão das maiores parcerias musicais do século XX, onde já tinham assento, àquela época, os irmãos George e Ira Gershwin, Tom Jobim e Vinícius de Moraes, Duke Ellington e Billy Strayhorn, além de alguns poucos outros. Apenas mais cinco anos pela frente seriam necessários para que os dois, com a contribuição providencial de George Harrison e Ringo Starr, se tornassem definitivamente 4ever.


por Rodrigo Morais

Coluna: Música



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