Tríade Andrade: o moderno rosnando, avançando em Mário, Oswald e Carlos

por Homero Nunes
por Homero Nunes

Versos livres, a vida pequena invadindo a poesia, o dia-a-dia, o Brasil interno fora da rima, fora da métrica, a prosa. Ideias soltas nas contradições da modernidade periférica, entre o silvícola canibal e a locomotiva, entre o característico e a opressão do universal. Propriedades comuns entre três sem parentesco que compartilharam o mesmo sobrenome: Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Carlos Drummond de Andrade. Com mais distinções do que semelhanças, repelindo-se em diferenças, estes Andrades agregaram numa tríade as ideias que fundaram o pensamento moderno brasileiro. O pouco (ainda que muito) que compartilharam em atitude e posicionamento intelectual, entrando no “espírito da época” e reagindo a ele, serviu para redesenhar o Brasil nas penas da literatura, da poesia, da arte, do intelecto. Sob pressão de alguns outros que também suaram no canteiro de obras do pensamento brasileiro – justiça seja feita a Bandeira, João Cabral, Tarsila, etc. e também aos operários da história social – os Andrades forçaram as estruturas da cultura nacional, demolindo as colunas, reformando os alicerces. Cada um a seu jeito, seja na liderança revolucionária de Mário e Macunaíma, nos Manifestos de Oswald e a Antropofagia, na poesia de Drummond, unidos na tríade do sobrenome e do modernismo, eles representaram a modernidade avançando no Brasil periférico, rosnando para a tradição, para o comodismo do colonizado, na invenção de nós mesmos, na invenção do próprio Brasil.
  
Mário de Andrade (1893 – 1945)

Moça linda bem tratada
Moça linda bem tratada,
Três séculos de família,
Burra como uma porta:
Um amor.
Grã-fino do despudor,
Esporte, ignorância e sexo,
Burro como uma porta:
Um coió.
Mulher gordaça, filó,
De ouro por todos os poros
Burra como uma porta:
Paciência…
Plutocrata sem consciência,
Nada porta, terremoto
Que a porta de pobre arromba:
Uma bomba.
  
Oswald de Andrade (1890 – 1954)*

Vício na fala
Para dizerem milho dizem mio
Para melhor dizem mió
Para pior pió
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhados
Carlos Drummond de Andrade (1902 – 1987)

Acordar, viver
Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.
Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?
Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?
Ninguém responde, a vida é pétrea.


*retrato de Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, 1923

Coluna Literatura



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