Cervantes, o cavaleiro andante e a quixotesca vida do escritor mais lido em 400 anos
por Homero Nunes
Trinta ou mais desaforados gigantes, de braços compridos, covardes e vis criaturas, que lhe sentiram o frio da espada e a aventura da leitura. Grandes moinhos de vento da história da literatura tentaram tirar de Cervantes o honorável título de escritor mais publicado e lido de todos os tempos. Muitas controvérsias, listas refeitas, contas, edições, disponibilidade em bibliotecas, adaptações, teses e dissertações tentam até hoje desbancar “o engenhoso fidalgo de La Mancha” da grande história. Mas tirando livros religiosos e um ou outro Conde e filósofo, ninguém seriamente é capaz de lhe infligir algum ferimento mais grave. Miguel de Cervantes, um homem do povo, pobre e fracassado, é o mais publicado e lido escritor em 400 anos.
O episódio dos moinhos de vento (leia aqui), os gigantes do devaneio de Dom Quixote, ocupou apenas uma página e meia, de um só pequeno capítulo, dentre os 126 divididos nos dois volumes publicados entre 1605 e 1615, em cerca de 700 páginas. Um fragmento que se tornou a própria metáfora da loucura, o resumo da ópera de Dom Quixote, a prova da genialidade de Miguel de Cervantes. Nele, um louco cavaleiro investe sua lança contra as imensas pás rodantes de um moinho, tendo como testemunha o atônito e fiel escudeiro Sancho Pança que tentara em vão dissuadi-lo. Uma toada de imenso humor que partiu a lança em pedaços e jogou longe o senhor, pasto afora, quebrando-lhe o ímpeto em dolorosos amassados na armadura. Depois disso seguiu destino, enfrentando ilusões pelo amor de Dulcineia e lutando a boa guerra contra as injustiças do mundo. Doido de jogar pedra, o gênio de Cervantes.
Miguel de Cervantes Saavedra nasceu em Alcalá de Henares, um pueblo castelhano, a 29 de setembro de 1547. Filho de barbeiro errante e mulher do campo, foi criado entre seis irmãos, correndo a Espanha que era dona do mundo no século XVI. Enquanto o pai fazia barba, cabelo e bigodes, também algumas sangrias (barbeiro-cirurgião), o menino ia solto na educação ou na falta dela. Malcriado e rebelde, só foi disciplinado pelos jesuítas na adolescência, recebendo leitura, gramática e o gosto pelas letras. Mas era mundano demais para jesuíta, queria apenas cair no trecho, seguir viagem, andante.
Viveu na Itália no fim do Renascimento, já um tanto barroca, após Dante, Maquiavel, Da Vinci e Michelangelo. Depois foi lutar nos mares da Grécia, em nome da Santa Liga Cristã, contra os ímpios e hereges. Ferido e maltratado na guerra, perdeu as funções da mão esquerda e ganhou apelido pejorativo de “manco izquierdo” ou “o manco de Lepanto”, local da batalha onde foi aleijado. Ficou fora de prumo um ou dois verões, tentou acalmar, mas voltou aos mares no norte da África em nova expedição militar. Lá nas águas quentes do Mediterrâneo teve o navio capturado por piratas otomanos, feito escravo e jogado nas masmorras de Argel. Penou por anos até ser pago o resgate absurdo exigido, comprometendo as finanças da família toda e dos amigos. Voltou torcido e falido à Castilla, pagando o preço de ter custado a miséria aos seus.
Quando sem esperança e sem dinheiro, sem servir para nada mais, foi servir de soldado raso, mais uma vez, nas carreiras do Rei. Mas não tinha mais idade nem paciência para suportar a espera e a espada embainhada. Pediu baixa e, em 1584, foi lutar no casamento, contra uma bela moça 20 anos mais jovem, iludida pelo semblante do “cavaleiro da triste figura”. Também nestes tempos tentava escrever, inspirado pelo teatro e intermédios. Nada que rendesse publicação e direitos, o que dificultava ainda mais aquele sujeito difícil, de dinheiro escasso, aventureiro sem eira, aquela triste figura. Deixou solitária a mulher no matrimônio e, claro, levou aquele imenso par de chifres de tourada quando ela o deixou por outro mais jovem, com mais dinheiro. Triste Cervantes.
Jogado estava, então, na velha estrada, aberta e seca, empoeirada, a caminho de outro lugar, longe dali, onde pudesse ser desconhecido. Em Madrid, trabalhando para pagar cama e prato, sobrou algum tempo para concluir seu primeiro livro, publicado em 1585: Galatéia. Era a novela de uma moça do campo, de ímpeto livre, escorregando entre os galanteios de dois pretendentes. Capa e brochura, nada de moedas no embornal.
Continuou escrevendo peças de teatro, alguma poesia, prosas, mas nada ainda de moedas. Até que foi trabalhar naquilo que considerava tarefa ingrata, um emprego que ninguém queria, cobrador de impostos. Um homem tão ruim com as próprias finanças, tentou justamente o cargo de cuidador do erário, parte pequena dele, mas suficiente para trancafiá-lo por suspeita de algum desvio. Jurando inocência, amargou alguns meses na prisão em Sevilla, quando à luz da solidão e do tédio vislumbrou uma novela de cavalaria, as aventuras de Dom Quixote de La Mancha.
Aos 57 anos, em 1605, conseguiu juntar o que lhe restava de força e dignidade e publicou O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha. O livro, em galope de Rocinante, correu Castilla, Andaluzia, Aragão, Catalunha, cruzou os Pirineus e os mares. Traduzido em português, francês, italiano e inglês, alcançou dezenas de edições nos anos seguintes, vendeu horrores, até culminar na segunda parte do Engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de La Mancha, publicada em 1615. Cervantes morreu no ano seguinte, no dia 22 de abril de 1616, ainda pobre, velho, ranzinza e doente do fígado. Enterrado sem honras nem lápide, num convento em Madrid.
Nos 10 anos que separaram as publicações das partes, Cervantes ainda pôde desfrutar de alguma benesse advinda do sucesso, ganhou algum dinheiro, bebeu vinho e comeu de tudo. Muito pouco ou quase nada se comparado ao enorme sucesso editorial que a obra alcançaria nos séculos, quatro deles, seguintes. Sustentou-lhe a velhice, é certo, mas não o tirou da pobreza nem da triste figura.
Desde 2011, uma busca pelos restos mortais de Cervantes cavou buracos no Convento das Trinitárias em Madrid, construção centenária reconstruída por cima dos próprios escombros por vezes. Em 2015 veio a confirmação da ossada encontrada de Cervantes, sem DNA nem nada, mas com a convicção de um louco cavaleiro andante enfrentando moinhos de vento.
por Homero Nunes
Coluna: Literatura
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