Pílulas de Literatura: As Vinhas da Ira

por Isso Compensa

The Grapes of Wrath

John Steinbeck, 1939

 

“Porque o homem, ao contrário de qualquer coisa orgânica ou inorgânica do universo, cresce para além de seu trabalho, galga os degraus de suas próprias ideias, emerge acima de suas próprias realizações. É isto o que se pode dizer a respeito do homem. Quando teorias mudam e caem por terra, quando escolas filosóficas, quando caminhos estreitos e obscuros das concepções nacionais, religiosas, econômicas alargam-se e se desintegram, o homem se arrasta para diante, sempre para a frente, muitas vezes cheio de dores, muitas vezes pelo caminho errado. Tendo dado um passo à frente, pode voltar atrás, mas não mais que meio passo, nunca o passo todo que já deu. Isto se pode dizer do homem, dizer-se e saber-se. Isto se constata quando as bombas caem dos aviões negros sobre a praça do mercado, quando prisioneiros são tratados como porcos imundos, e os corpos esmagados se consomem imundos na poeira. Pode ser constatado desta forma. Não tivesse sido dado esse passo, não estivesse vivo no pensamento o desejo de avançar sempre, essas bombas jamais cairiam e nenhum pescoço seria jamais cortado. Tenha-se medo de quando as bombas não mais caem, enquanto os bombardeiros ainda existam, pois que cada bomba é uma demonstração de que o espírito não morreu ainda. E tenha-se medo de quando as greves cessam, enquanto os grandes proprietários estão vivos, pois cada greve vencida é uma prova de que um passo está sendo dado. E isto se pode saber — tenha-se medo da hora em que o homem não mais queira sofrer e morrer por um ideal, pois que esta é a qualidade básica da humanidade, é a que a distingue entre tudo no universo.”

 

Frank Darien, Russell Simpson e Henry Fonda, na adaptação de “As Vinas da Ira”, 1940.

” – Olha, mãe… Tenho passado os dias e as noites sozinho, aqui escondido. Sabe em quem eu tenho me entretido a pensar? No Casy! Ele falava muito. Ás vezes aborrecia-me. Mas agora tenho pensado e repensado no que ele dizia.  E lembro-me, lembro-me bem de tudo. Ele disse que uma vez tinha ido para o mato , à procura da própria alma, e que, por fim, descobrira que não tinha uma alma que fosse só dele. Disse que tinha unicamente uma  pequena parte de uma alma enorme. E ele achava que não servia de nada andar em lugares desertos, porque aí, a tal pequena alma que ele tinha já não servia de nada. Só tinha utilidade quando estava junto às outras, com as quais formava um todo. É engraçado como me lembro de tudo isso ! E, no entanto, tinha nessa altura a impressão de que mal o ouvia… Mas, agora, sei que um indivíduo solitário não tem préstimo nenhum.

– Era um bom homem, Casy. – Comentou a mãe.

Tom continuou:

– Um dia ele citou-me um trecho das escrituras, mas que nem parecia de lá. Disse-me duas vezes e eu decorei. Dizia que era do livro do pregador.

– E como é, Tom?

– [Dois valem mais que um, porque ambos terão recompensa melhor pelo seu trabalho. E, se um cair, o outro erguerá o companheiro. Mas, aí do que estiver só, pois quando cair não haverá ninguém junto de si que se prontifique a levanta-lo] Isso é só um pedaço.

– Continua – pediu a mãe. – Continua, Tom.

  É só mais um pedacinho. [ E, se dois se deitarem juntos, aquecerão. Mas como se aquecerá o homem solitário? E, se um qualquer o pretende dominar, serão dois a resistir e uma corda reforçada se parte com mais dificuldade.]

– E isso é das Escrituras?

– Casy assim disse. Chamava-lhe o livro do pregador.

– Shiu.. Escuta!

– É o vento, mãe. É o vento, que eu bem sei.  E deu-me cá a pensar, mãe. Uma grande parte dos sermões é a respeito dos pobres e da pobreza. Se a gente nada possuir, que junte as mãos e não pense mais em coisa nenhuma, que no céu nos darão sorvetes em pratos de ouro. E o tal livro do pregador diz que dois são melhor compensados pelo seu trabalho. 

– Tom- perguntou a mãe – o que tu pretendes fazer?

A resposta dele demorou um bom bocado,

– Estive pensando em como eram as coisas naquele acampamento do governo. Em como as pessoas sabiam resolver seus assuntos. Se havia uma desordem, eles lá apaziguavam tudo. E não havia policiais ameaçando as pessoas com revólveres na mão, e , apesar disso,  via-se por lá mais ordem e sossego do que se por lá andasse a polícia.  E tenho pensado em por que razão o mesmo não se dá em outros lugares. Corram com os policiais, que não são gente da nossa. Deveríamos trabalhar todos para o bem comum. Deveríamos cultivar a nossa própria terra.

– Tom – repetiu a mãe – que pretendes tu fazer?

  O que fez Casy. 

Foi a resposta.

  Mas deram cabo dele.

– Pois deram – concordou Tom – porque ele não soube safar-se a tempo.  Ele não esteve a fazer nada que fosse contra a lei. Mãe, tenho pensado um bom bocado na nossa gente, que vive como os porcos, enquanto se deixa por aí destratada uma terra excelente, enquanto há sujeitos com um milhão de hectares, perto de cem mil fazendeiros bons que vivem a estalar de fome. E pus-me cá a matutar que se nós nos uníssemos todos, e nos puséssemos a gritar como aqueles fulanos do Rancho Hopper…

– Tom, eles vão te perseguir e encurralar como fizeram àquele rapazinho, ao Floyd.- Disse a mãe.

  Eles hão de perseguir-me de qualquer maneira. Perseguem todas as criaturas como nós. 

– Mas tu não estás com idéias de matar ninguém,  não, Tom?

– Não. Estive simplesmente a pensar que uma vez que já estou fora da lei poderia…Que diabo, mãe. Ainda não sinto as ideias bem claras dentro de mim! Agora não me atormente, mãe!  Não me atormente!

Permaneceram sentados, sem falar, na cavidade negra formada pelas videiras. Depois a mãe continuou.

– Mas como eu hei de ter notícias suas? Podem te matar, que eu nem sequer virei a saber. Podem te machucar e maltratar. E eu sem saber de nada!

Tom riu, com certo embaraço.

– Bem, talvez o Casy tenha acertado quando disse que uma pessoa não possuía uma alma própria, mas apenas uma pequena parte de uma grande alma… E então…

– Então O QUE, Tom?

– Então nesse  caso todas as coisas deixam de ter importância. Eu estarei em qualquer lugar, na escuridão.  Estarei em todas as partes, em qualquer lugar para onde a senhora possa olhar. Onde quer que haja uma luta para que pessoas com fome possam comer. Eu estarei lá. Onde quer que a polícia esteja batendo em uma pessoa, eu estarei presente. Imagina se o Casy soubesse disso! Estarei  em qualquer lugar em que se veja criaturas gritarem de raiva.  E estarei onde as crianças sorriem, porque têm fome mas sabem que a janta não demora;. E quando nosso povo comer aquilo que tiver plantado, e morar nas casas que tiver construído, então também eu estarei presente. Consegue ver? Olha que eu já vou falando como Casy. Isso é de tantas vezes pensar nele. Há ocasiões em que me parece que eu estou o vendo.”

 

 

Steinbeck, John. As Vinhas da Ira. Tradução Herbert Caro e Ernesto Vinhaes. Rio de Janeiro: Record, 2013.

Imagem de capa: do filme homônimo, dirigido por John Ford, de 1940

 

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