Rocco e Seus Irmãos: tragédia e decadência em um clássico do cinema italiano

por Homero Nunes
 
“Todas as famílias felizes são parecidas entre si.
As infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”.
Tolstoi, nas frases iniciais de Anna Karenina

 
 

A família Parondi, de Rocco e seus Irmãos, foi muito infeliz à maneira que o cineasta italiano Luchino Visconti (1906 – 1976) escolheu narrar, mostrar, construir. Lançado em 1960, o filme Rocco e seus Irmãos (Rocco e i suoi Fratelli) conta a história – meio épica, meio fábula – de uma família de retirantes do sul da Itália em busca de vida nova na moderna e industrial Milão. 

Diante do embate entre modernidade e tradicionalismo, Visconti mostra a decadência de uma família que abandona a dura e faminta vida de uma sociedade virtuosa, o campo, para tentar a sorte nas ilusões de uma sociedade corrompida, a cidade grande. As cenas iniciais da família chegando à cidade, deslumbrada, cheia de perspectivas e sonhos e ainda unida pela força dos laços de amor e sangue, demonstram tanta ingenuidade que a trama nos leva à uma pitada da angústia que irá perpassar todo o filme. Era bom demais para ser verdade…

Trazendo à tona a cena moderna, Visconti constrói a narrativa de Rocco e seus Irmãos mostrando, através da história dos Parondi, a degradação dos valores, o dilaceramento da vida comum, a decadência da sociedade contemporânea. Decadência esta que, numa só palavra e visão simplista, definiria não só o filme em questão como boa parte da obra do diretor. A decadência de uma família como a de muitas outras. A história de Rocco e seus irmãos como referência universal.
Rocco e seus Irmãos não só é uma obra prima do cinema como também uma crítica do mundo moderno através das lentes de um cuidadoso diretor. Visconti, a partir de sua visão de mundo e seu comprometimento político e filosófico, lança mão da tragédia e da decadência de uma família para apresentar sua visão, decadente e trágica, da sociedade moderna. A essência da tragédia do filme é justamente o choque entre a angústia humana, incorporada em Rocco e os seus, e a fatalidade externa, assombrada pela modernidade capitalista.
O diretor passeia pela cena moderna mostrando suas contradições e provações, deixando o cenário, sutilmente, interferir no cotidiano das pessoas. A cidade não pára um minuto. Mesmo que o drama seja na vida de um ou outro, no turbilhão da modernidade, este é apenas mais um drama, como o de milhares de pessoas. A vida parece acabar para determinado personagem, mas o pano de fundo não deixa de lembrar que “a vida continua”, independente do que possa acontecer na sua pobre e mortal vida. 
Isso tudo sem perder de vista uma refinada e poética proposta estética, na qual o conteúdo, a mensagem, pode deslizar de uma cena a outra sem perder a força ou sobrecarregar o ritmo do filme. Com fotografia apurada e seqüências deslumbrantes, Visconti, consegue produzir uma obra de arte engajada, unindo forma e conteúdo e mantendo, ao mesmo tempo, seu compromisso ideológico, político, estético e filosófico.


O CONDE VERMELHO

Há de se notar que não por acaso o filme é taxado como uma “tragédia social”, uma vez que o comunismo do cineasta era declarado e que, por mais que se tente esquivar, seu engajamento com a crítica social é explícito. Entretanto, não chega a ser panfletário, para salvo deleite do espectador. Visconti consegue levantar questões e idéias sem cair no pedante discurso ideológico, comum no cinema panfletário de esquerda – como é o caso, por exemplo, de seu conterrâneo e quase contemporâneo Elio Petri em “A Classe Operária Vai ao Paraíso” (1972). 
Há de se lembrar que o filme foi produzido no final dos anos 50 (lançado em 60), na Itália pós-fascismo, na Europa do pós-guerra, no mundo dividido entre capitalismo e comunismo. Ideologia era palavra de peso nos círculos intelectuais. Discussões a respeito dos trabalhadores explorados, da concentração de renda, da baixa qualidade de vida do povo eram recorrentes.  Comunistas ainda faziam barulho. Havia uma intensa circulação de idéias. A cultura cinematográfica estava em ascensão. O cinema, citando só o italiano, tinha Rossellini, Antonioni, Vitório de Sica, Fellini, Pasolini e Visconti – só para falar nos clássicos e não prolongar parágrafos de nomes citados.
Falando no diretor e seus patrícios, Visconti era sui generis no cinema italiano nos idos do “naturalismo” e “neo-realismo”, deixando estes e outros “ismos” de lado para criar algo com sufixo mais pessoal: “viscontiano”. Visconti “amava Verdi e o melodrama”, como declarou certa vez à maneira de epitáfio; paixão que ao lado de seus princípios socialistas entranhou em toda sua obra, no cinema e no teatro. Filho de família nobre e aristocrata, o “conde vermelho” nada tinha a ver com o sofrimento da família Parondi, a não ser o melodramático e operístico caráter de seu pensamento acerca do mundo moderno e suas contradições. 
Assistindo Rocco e seus Irmãos percebe-se que o diretor teve certamente liberdade de criação (e recursos para isso) e pôde, como diria Godard, usar o cinema como un outil de pensée, “um instrumento de pensamento”. Além de expor seu pensamento em relação ao mundo, o diretor buscou despertar na platéia sentimentos que a levasse a pensar. Assim, não é de se estranhar que o público não só criasse uma identificação com a família Parondi, como também que se sentisse tocado, às vezes aliviado, às vezes indignado, com o triste e trágico destino de Rocco e seus irmãos.


Clássico irretocável, Rocco e seus Irmãos foi relançado em DVD, em uma edição especial com muitos extras, “making off” e o documentário “Luchino Visconti”, dirigido por Carlo Lizzani, sobre a vida e obra do diretor italiano.
Com Alain Delon, Annie Girardot e Cláudia Cardinale.

 
 

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