Robôs sanguíneos: o incômodo de Estamira na crueza da estética social

por Homero Nunes
por Rosane Castro
“Fazer ver é mais do que mostrar, mais do que exibir,
pois implica compartilhar um espaço e um discurso”
Mondzain
Estamira é uma mulher acima dos 60 anos com uma história de vida marcada pela dor e sofrimento, esquizofrênica, que viveu em condições subumanas no lixão de Gramacho. É um belo filme, com todos os recursos narrativos e estéticos do bom cinema: luz, ângulos, matizes de cor e trilha. E as coisas que Estamira diz no meio da sua loucura podem parecer uma profunda lucidez e poesia de quem já está numa outra dimensão. O diretor sofreu duras críticas por ter dado ajuda financeira a ela, por ter lhe ajeitado uma moradia melhor; isto seria uma “troca” para viabilizar seu cinema? Esta é a questão: qual a medida ética de um filme de 3 horas ancorado no discurso de uma mulher em pleno sofrimento mental, em meio a uma pobreza material extrema? Sua “função” é esta mesma? Mostrar o sofrimento e o infortúnio humanos, jogar luz nesta ferida para que saiamos da nossa zona de conforto? Mostrar neste caso é também uma ação política? Pense no dilema dos correspondentes de guerra, que estão ali no meio do horror fazendo seu (importante) trabalho de mostrar e denunciar a estupidez e o sofrimento em estado bruto.
 
 
Sebastião Salgado, por exemplo, também recebe duras críticas pela sua fotografia que, pelos recursos estéticos que utiliza, estaria transformando aquelas vítimas em heróis. Rebate a essas críticas dizendo que pretende provocar emoções, sensibilizar, fazer com que a pessoa saia de sua exposição diferente de quando entrou. Quem leu Bourdieu sabe que as imagens são sempre uma produção e constroem um discurso sobre o mundo social, para legitimá-lo ou para transformá-lo. O cinema, a fotografia, a literatura, a arte, têm essa deliciosa força de nos tirar do lugar e nos arrebatar.
 
Foto de Sebastião Salgado
Por ora, tenho achado que, melhor ainda que a interpretação, a narrativa estética, será (também) o ato. O ato de tirar as muitas Estamiras ainda vivas das suas condições degradantes de vida, de exterminar os tratamentos puramente medicamentosos e irresponsáveis (a “quadrilha dos dopantes” nas palavras da própria) que abandonam e (des)cuidam de pacientes em grande sofrimento, de fazer desaparecer da cena política os colarinhos brancos criminosos que se omitem frente a estas condições que eles mesmos ajudam a criar e perpetuar.
Quero que do filme reste apenas o seu sentido de urgência para amenizarmos todo sofrimento humano que possa ser amenizado, não apenas como produtores e consumidores de estéticas e notícias, mas para não sermos nós os “robôs sanguíneos”, os cínicos, os “espertos ao contrário”, das duras e tristes palavras de Estamira.
 
Estamira
Dir. Marcos Prado, 2006
Coluna: Cinema
 

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