Na garupa do Che, de moto pela utópica Latino América: Diários de Motocicleta

por Homero Nunes
por Homero Nunes

 

De moto pela América Latina, Walter Salles viajou por um tempo em que a ilusão era viva, em que se podia sonhar, onde era possível mudar o mundo – em pensamento e ação. Pelos diários de Ernesto Che Guevara e Alberto Granado o cineasta fez seu Diários de Motocicleta viajando no espaço e no tempo pela utópica Latino América.
Buscando na viagem a construção do pensamento através do sentimento, de uma ideologia através da emoção – pensamento forte, duro, e ternura no coração – Diários de Motocicleta narra a aventura de Guevara e Granado pelos confins da América Andina, da Argentina à Venezuela, numa moto Norton 500cc de 1939, já devidamente surrada em 1952.  Da patagônia ao deserto do Atacama, de Machu Picchu à Amazônia, o filme passeia pelos cenários deslumbrantes de uma Sulamérica marcada pela injustiça social.
Com uma fotografia sensacional, de paisagem em paisagem, Motorcycle Diaries transforma-se de uma comédia inicial em um nó na garganta ao longo da projeção. Tombos, paqueras, enrolações desastradas e espirituosas tiradas vão tomando características de reflexão e pensamento sobre a realidade desigual do continente. Deixando entrever o que seria a fundamental influência, psicológica e intelectual, na formação do mito Che.
Ao dar ouvidos à tradicional música andina, Salles começa por descortinar a visão de uma multicultura nascida do entrelaçamento entre civilizações e nações distantes tanto na temporalidade quanto em suas percepções de vida. Guevara e Granado ficam admirados, por exemplo, com a arquitetura de Cuzco, cidade espanhola construída sobre as ruínas da capital do Império Inca, descobrindo com a ajuda de um guia local as fundações incas e as construções dos “incapazes”, ou seja, dos espanhóis – se um terremoto qualquer abala as estruturas espanholas, os incas dominavam o conhecimento arquitetônico para suportar tremores.
Mas além da beleza estética, irretocável, o mérito do filme é mexer com o sentimento latino-americano da utopia continental. Por impossível e ilusório que seja, o sonho da América Latina unida é defendido no filme por um Dom Quixote, Guevara, e seu fiel escudeiro Sancho Pança, Granado. Se Ernesto é o desapegado, sincero e correto pré-revolucionário, balde de honestidade e solidariedade, Alberto é festeiro, mulherengo e malandro – típico anti-herói latino.
Aliás, é o personagem de Granado que rouba a cena e conduz a trama de forma sutil e bem humorada. Enquanto o personagem Guevara torna-se cada vez mais o protótipo do mítico guerrilheiro romântico. Fato que seria facilmente criticado não fosse a datação precisa em uma época de ideologia, sonho e utopia.
Diários de Motocicleta é um filme sobre uma viagem na América Latina nos tempos da ilusão, num tempo em que a história não tinha fim, em que o destino estava aberto e podia ser alterado pela intervenção de quem possuísse coragem e firmeza, sem perder a ternura. A vontade é de pegar a mochila e viajar por essa América Latina que não existe mais.
Machu Picchu – foto por Homero, 2002


SOY LOCO POR TI AMÉRICA
A vontade é de pegar a mochila e sair pela América Latina… Já fiz isso e conheço boa parte da viagem do Che que o Walter Salles escolheu filmar no Chile, Bolívia e Peru – o deserto do Atacama e Machu Picchu incluídos. Mas aquela viagem de moto é sensacional, nostálgica. Nostálgica não somente porque passa por lugares onde eu tive o privilégio de estar, mas por trazer à tona um tempo que se desmanchou no ar. Nostalgia latino-americana. Nas palavras do próprio Che diante de Machu Picchu: “como posso sentir nostalgia de um mundo que não conheci?”
Viajar pela América Latina faz a gente se sentir mais latino-americano, faz a gente criar um vínculo com o nosso passado ibero-americano. Mesmo o fato de ser brasileiro, mineiro, bairrista e, sobretudo, falar português, não conseguirá nunca mais afastar o sentimento de continente, de América Latina. De Bolívar a Guevara, só mesmo na aventura de cruzar as fronteiras podemos entender a utopia de uma América Latina unida. Nostalgia de um tempo em que era permitido sonhar.
No Brasil somos meio isolados, achamos que nós somos a América do Sul. Uma viagem pelos Andes é suficiente para mudar essa visão. Precisamos, como diria Walter Benjamim, da “desterritorialização” (de nosso núcleo essencial, do nosso mundinho íntimo), para entender o que é ser latino-americano. Diante das várias partes, o que nos une é a “antropofagia”*, é o poder de deglutir o que é estranho e tirar dele o essencial que nos interessa – o resto a gente vomita.  Miséria e pobreza são iguais em todo lugar, mas também a antropofagia, a maneira de lidar com as culturas nativas e estranhas, dominadoras e dominadas.
Se a imagem forte do continente é a da desigualdade, da violência, da falta de perspectivas, conhecer a realidade de perto altera essa percepção. Não somos só miséria, mas cultura, história, natureza. Respirar o ar rarefeito dos Andes é buscar o fascínio dos Incas pela astronomia, pelo clima, pelo tempo; é viver o susto da conquista, a surpresa da descoberta. Se a história desmascara o estupro que foi nossa colonização ou a violência de nossos regimes políticos ou a realidade de exploração e desigualdade; ao mesmo tempo essa mesma história nos mostra a cultura latina, tão rica quanto misturada; a criatividade, a poesia, a música que contornou a repressão e transcendeu a política entre Neruda, García Marques, Pablo Milanez ou Chico Buarque; a contestação, a luta, a esperança, o sonho e a ilusão de um Ernesto Guevara e outros inconformados românticos. Ser latino-americano é, antes de ser a escória do mundo, ser rebelde, ser contestador, ser contra o FMI, ser contra o George W. Bush, ser contra o imperialismo, ser contra as injustiças sociais, ser contra a desigualdade, ser contra… e saber que “ser contra” nada adianta, mas faz o pensamento funcionar e o sonho permanecer. Somos Macunaíma, Dom Quixote e Che Guevara. Anti-heróis na contestação romântica do mundo. Hasta la Victoria, siempre!
Homero Nunes

*Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. – Manifesto Antropófago, 1928.

Os diários originais de Ernesto Guevara em livro
 
O filme de Walter Salles Diários de Motocicleta, 2004
 

 


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