Abbas Kiarostami: o modus operandi de um gênio do cinema

por Juliano Mignacca

Imaginem a seguinte cena inicial de um filme: um carro percorre em ziguezague uma montanha.  O enquadramento é realizado em plano aberto, com tomadas longas. O diálogo entre os dois homens no veículo comparece em off.  Alguns minutos se passam e um corte nos revela o rosto do motorista, mas não de seu interlocutor. A conversa entre eles é registrada por uma câmera fixa do lado do passageiro, de modo que somente o perfil do motorista apareça. Algumas curvas a mais e ele encosta o carro para pedir informação. No quadro, somente o tronco de um homem que gesticula indicando uma direção. Já se passou um quarto do filme e ainda não é possível saber do que se trata. 

Gosto de Cereja, 1997

Se o título deste texto não revelasse seu conteúdo, provavelmente a descrição acima já sugeriria ao leitor algo do cineasta iraniano Abbas Kiarostami (1940-2016). Em muitos de seus filmes, o deslocamento das personagens em um automóvel é parte da construção. A forma se torna conteúdo. Em Gosto de Cereja (1997), Palma de Ouro no Festival de Cannes, a conversa entre os dois interlocutores no carro foi filmada separadamente, sem que os atores se encontrassem. O pingue-pongue do diálogo é fruto da edição. Impressionante como Kiarostami conseguiu tirar emoção dos atores sem que estivessem contracenando.

Já Dez, de 2012, é todo rodado dentro de um carro. Aparentemente as câmeras foram instaladas no painel ou no capô. O enquadramento é em diagonal, com um sutil contra-plongée. Não se tem o ponto de vista das personagens. Mas a janela do carro nos oferece um contínuo travelling. 

O Vento nos Levará, 1999

Outro aspecto de seus filmes é a pouca informação que seus enredos costumam oferecer. Nunca sabemos ao certo, pelo menos de imediato, o motivo das ações das pessoas. Em O Vento nos Levará (1999), Leão de Ouro no Festival de Veneza, só ficamos sabendo que a intenção da equipe de reportagem num vilarejo é filmar uma cerimônia fúnebre quando decorrido uma hora de filme. As informações nos chegam pouco a pouco, em doses homeopáticas. Em Gosto de Cereja não sabemos exatamente a razão pela qual Baddi quer se matar. Existe toda uma ambiguidade que nos leva a conjecturas. Ele realmente comete o suicídio? Fica a dica para assistir.  

Shirin, 2008

Outra assinatura do artista iraniano é a maneira como seus filmes terminam. Ele oferece liberdade ao expectador para formular suas próprias conclusões. Na maioria das vezes, terminamos o filme na dúvida. Porém, com o livre-arbítrio para construir o final que desejamos. O filme se completa em nós. Ou você pode deixá-lo em aberto. A escolha é sua. Seus filmes se esquivam da narrativa tradicional – conflito, clímax e desfecho.

Onde Fica a Casa de Meu Amigo?, 1987

Também é comum ocultar algumas personagens fisicamente.  Nem sempre temos o contracampo. O interlocutor se faz presente somente com a voz. Certa vez Kiarostami disse que seu sonho seria fazer um cinema sem microfone, câmera, luz, nada. Nada que pudesse interferir na cena. Quem sabe encontrar um jeito de os atores não perceberem que estão sendo filmados. Talvez isso explique a sensação ilusória que temos entre documentário e ficção. O diretor insinua que as situações seriam espontâneas. Essa é umas das características de seu modus operandi em relação à mise-en-scène. É um grande ilusionista.

Vida e Nada Mais, 1991

No filme Vida e Nada Mais (E a Vida Continua), de 1991, ele faz uma reconstituição de uma experiência vivida. Três dias após o terremoto que devastou o noroeste do Irã, matando mais de 60 mil pessoas em 1990, Kiarostami e seu filho pequeno se dirigiram ao vilarejo de Koker, onde ele havia realizado Onde Fica a Casa de Meu Amigo? (1987). O cineasta queria confirmar se o elenco que participou do filme sobrevivera ao terremoto. Vida e Nada Mais (E a Vida Continua) é a reconstrução dessa viagem. Ele realizou o segundo filme da trilogia de Koker, através de uma experiência própria.  Parece documentário, mas é ficção. 

Close Up, 1990

Em Close Up (1990) a linha divisória entre verdade e mentira é quase imperceptível. Kiarostami tirou a historia de um acontecimento real: um sujeito, sósia do cineasta Mohsen Makhmalbaf, que se fez passar por ele para tirar proveito de uma família admiradora de sua obra. Kiarostami convenceu o impostor (Ali Hossein Sabdzian) a representar semelhante situação assim que este deixou a prisão por conta do ocorrido. Parece real, mas é representação. Ele tenta ser o mais fiel à realidade, mas impossível ser por completo. A câmera sempre provocará a perda da realidade.

Cópia Fiel, 2010

Além da linguagem, no tocante ao conteúdo, o cineasta iraniano alcança dimensões psicanalíticas e socioculturais. Baddi, o homem que busca o suicídio em Gosto de Cereja, possui aquilo que uma personagem teria de mais original: a ambiguidade. Baddi quer se suicidar e, por isso, perambula de carro pela cidade à procura de alguém que aceite dinheiro para jogar terra sobre sua cova, assim que ingerisse uma dose letal de soníferos. Durante um considerável tempo do início do filme, pensamos se tratar de um homem em busca de sexo. Talvez seja somente uma sugestão. Mas somos induzidos a incorrer em nossas próprias perversões. Nossos valores constroem as suposições. O que pode ser um gravíssimo erro. Baddi pede ajuda a um seminarista, um soldado e a um velho que lhe revela sabedoria. Nesse pacote de metáforas podemos concluir que os alicerces da sociedade do Irã estão sendo questionados. O exército é representado pelo jovem militar, a religião pelo seminarista e a crença popular pelo velho. Quanto ao motivo que levaria a personagem desejar o suicídiotudo indica tratar-se de um caso de homossexualidade reprimida pelo opressor regime dos aiatolás.

Um Alguém Apaixonado, 2012

O Vento nos Levará é o filme do nada. Nada acontece. A equipe espera uma velha senhora morrer para gravar a cerimônia fúnebre em que as mulheres unham os próprios rostos.  O filme é cheio de signos sobre a vida e a morte. Uma construção poética que cabe ao olhar decodificá-los. Abbas Kiarostami é tudo isso e mais. Eu poderia ainda me estender falando de Cópia Fiel (2010), estrelado por Juliette Binoche, que sintetiza num quebra-cabeça aquilo que é sua obra em belíssimas imagens. Ou Um Alguém Apaixonado (2012)que demonstra enorme sensibilidade na abordagem de temas como solidão e desejo. Em 2017 completou-se um ano da morte de Kiarostami. Perda inestimável para a sétima arte. Se, na juventude, ele não foi aceito na Escola de Belas Artes do Irã suprindo uma possível vocação para a pintura, não há dúvida de que soube manifestar com maestria seu talento com imagens em movimento.

por Juliano Mignacca

Coluna: Cinema

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