Néctar dos Deuses: o papel social da cerveja

por Isso Compensa

IC Pub
por LG Moura

“A cerveja é a prova viva de que Deus nos ama
e nos quer ver felizes.”

Benjamin Franklin

 

Em qualquer lugar do mundo onde as pessoas estejam se reunindo, conversando, rindo e se divertindo, é bem provável que haja uma cerveja. A cerveja tem um papel de bebida social desde os primórdios da humanidade, seja por simples saciedade da sede até mesmo passando por rituais religiosos. Descrições sumérias datadas de 3000 a.C. mostram duas pessoas bebendo cerveja em canudinhos em um mesmo recipiente partilhado. Desde antes dessa época já era possível individualizar o consumo de bebidas em recipientes separados, mas isso demonstra o ritual de se partilhar a bebida de forma única, consumindo o mesmo líquido, o que não é possível se fazer com a comida. Essa situação denota hospitalidade e amizade, algo similar ao brinde que fazemos nos dias de hoje. Sinalizava também que se podia confiar na pessoa que estava oferecendo a bebida e que esta não estaria envenenada ou inadequada para o consumo. Ainda mais, em uma época quando não havia tratamento de água, beber cerveja era mais seguro do que beber água. 

 

Mercenário Sírio tomando cerveja ao lado de sua esposa egípcia e seu filho – Pintura datada da 18ª dinastia.

A história da cerveja remete a um passado distante, lá pelos idos de 10.000 a.C., quando o homem passou a coletar e armazenar grãos de cereais selvagens no Crescente Fértil (região compreendida entre Egito, Turquia, Irã e Iraque). Esses grãos eram alimentos pouco saborosos e desinteressantes enquanto crus, mas eram atrativos quando esmagados e mergulhados em água. Inicialmente eram ingredientes de preparação de um tipo de mingau e mais tarde, por acidente ─ lembre-se de que era difícil estocar os grãos em locais completamente impermeáveis ─, descobriu-se que esses grãos embebidos em água por algum tempo brotavam com gosto doce. São os primórdios de produção dos grãos maltados. Como haviam poucas fontes de açúcar disponíveis, esses grãos maltados passaram a ser valorizados, estimulando as técnicas de preparação de malte em que o grão era lavado ou enxaguado e depois seco. A segunda descoberta também veio por acaso: o mingau feito com grãos maltados, quando deixado alguns dias em repouso, passava por uma misteriosa transformação e ficava efervescente e embriagante. O mingau virava cerveja.

 

Receita de cerveja da Babilônia

Depois dessa descoberta crucial, a qualidade da cerveja foi sendo melhorada por tentativa e erro. Quanto maior a quantidade de grãos maltados e maior o tempo de repouso, mais forte será a cerveja. Descobriu-se que o recipiente usado em preparos passados também influenciava a cerveja. Há inclusive registros históricos egípcios e mesopotâmicos que mostram que os produtores de cerveja sempre carregavam consigo suas “tigelas de mistura”, “recipientes que fazem boas cervejas”, uma vez que estes se encontravam impregnados de culturas de leveduras. A partir de então, não havia mais dependência da levedura selvagem, inconstante em qualidade. Os mestres cervejeiros ancestrais misturavam frutas silvestres, mel e temperos para alterar o sabor da cerveja de diversas maneiras, assim foram criando bebidas para diversas ocasiões. Registros egípcios mencionam pelo menos 17 tipos de cervejas com referências poéticas como “a boa e bela”, “a celestial”, “a plena” dentre outros tipificadores como cerveja escura, cerveja fresca e cerveja prensada.

 

 

Antiga também é a percepção do homem de que a cerveja possuía propriedades sobrenaturais. A capacidade de se embriagar e ter o estado de consciência alterado era tida pelos bebedores do período neolítico como algo mágico. A conclusão de que a cerveja era um presente dos deuses era algo óbvio. Há muitos mitos em diversas culturas que explicam e representam a criação divina da cerveja e a transferência desse ensinamento ao homem. Então, nada mais justo e lógico do que utilizar a cerveja como oferenda aos deuses em cerimônias religiosas, funerais e rituais de fertilidade na agricultura. Essas situações são referenciadas nas culturas egípcia e suméria e, provavelmente, remontem a um período ainda anterior a essas culturas. Os incas ofereciam sua cerveja — conhecida como chicha — ao sol nascente numa copa dourada e derramavam-na no solo ou cuspiam de volta o primeiro gole como forma de oferenda aos deuses da Terra. Os astecas ofereciam sua pulque a Mayahuel, a deusa de fertilidade. O ato de levantar um copo para saudar, felicitar alguém ou desejar uma boa viagem é um resquício da antiga ideia de que o álcool tem o poder de invocar forças sobrenaturais.

 

Monumento Blau, peça suméria de 4000a.C., mostra cerveja sendo oferecida à deusa Nin-Harra.

Compensa:

STANDAGE, Tom. História do Mundo em 6 Copos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

MORADO, Ronaldo. Larousse da Cerveja. São Paulo: Larousse do Brasil, 2009.

“Eu recomendo… pão, carne, vegetais e cerveja.”
Sófocles, para uma dieta moderada

 

Coluna: Bric-a-Brac
*Luiz Gustavo Moura (LG) é produtor de áudio, músico, cervejeiro bebedor e jornalista. Saúde!

 

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