Ismael Nery, no infortúnio da vida e na redenção da arte

por Juliano Mignacca
Ismael Nery, Nós, 1926
Visitar o Museu de Arte Contemporânea de São Paulo (MAC-SP) já vale a pena só para conhecer o edifício. Projetado por Oscar Niemayer (1907-2012) nos anos de 1950, o antigo prédio, que antes sediava o Detran-SP, foi transformado em museu em 2013. O saguão, com seus pilotis em forma de “V”, certamente não passará despercebido. A arquitetura por si já é um convite imperdível, e o acervo desse museu é algo de deixar o queixo caído.
Se o visitante tiver fôlego para percorrer os sete andares, vai se deparar com obras de Modigliani, Picasso, Kandinsky, Anita Malfatti, Alfredo Volpi, entre outras das 10 mil que o acervo do museu contém. Por último, poderá fazer uma pausa no topo do prédio, de onde se tem uma vista panorâmica da cidade de São Paulo e do Parque do Ibirapuera, localizado ao lado.
Numa das primeiras vezes que fui ao novo museu, uma obra que me entorpeceu por alguns instantes foi Figura (1927), de Ismael Nery (1900-1934). Uma mulher grávida, cujos braços másculos se assemelham ao de um homem, dois rostos, talvez dois sentimentos que se conectam àquela gravidez. Híbrido pelas formas cubistas e cores expressionistas. Uma imagem que evoca o surreal. Ele expõe, numa única obra, as três tendências formais que permearam sua vida artística. Fiquei intrigado porque, além de conhecer muito pouco sobre esse artista até então, percebi que aquele quadro era o único dele existente no MAC.
Ismael Nery, Figura, 1927
Mais recentemente, para meu deleite, a galeria Almeida e Dale me brindou com uma retrospectiva desse ilustre artista plástico paraense. Algo que não acontecia há 15 anos, devido ao fato de suas (poucas) obras estarem, em sua maioria, nas mãos de colecionadores.
A passagem terrestre de Ismael Nery daria um conto trágico. Seu pai morreu aos 33 anos, logo depois o irmão, a mãe caiu em insanidade e, por último, sua própria morte, também aos 33 anos, vítima de tuberculose. Mesmo com tão pouco tempo de vida, Nery teve múltiplas facetas artísticas. Foi poeta, arquiteto, cenógrafo e filósofo.
Ismael Nery, Autorretrato, 1930
Apesar de ter sido contemporâneo dos artistas modernistas brasileiros na entrada do século passado, sua arte visual era diferente da de seus pares. Não tinha interesse por temáticas nacionalistas. Sua obra gira em torno de certas dualidades de cunho filosófico como o eu e o outro, o corpo e o espírito, o bem e o mal, o masculino e o feminino. O outro é normalmente representado pela sua mulher, a poetisa Adalgiza Ferreira, ou seu grande amigo, o poeta Murilo Mendes. Seus quadros conduzem a uma questão paradoxal, como alguém que se olha no espelho e pergunta: “Quem sou eu?”
Murilo Mendes, diante de Composição Surrealista, de Ismael Nery, 1929
Alguns de seus trabalhos remetem a Amadeo Modigliani pelas formas alongadas do pescoço e das mãos. Também não há como deixar de associá-los à obra de Frida Kahlo. Os dois souberam externar com maestria suas tragédias pessoais. Outro detalhe curioso é sua assinatura: uma logomarca que poderia servir de inspiração para agências de publicidade.
Ismael Nery, Composição surrealista, 1929
Mesmo com tantos predicados, Nery morreu sem nunca ter vendido um quadro em vida. Sua obra veio à tona para o grande público somente em 1965, na 8º Bienal de São Paulo, ao ser exposta em uma sala especial nomeada Surrealismo e Arte Fantástica. Discorrer sobre esse grande artista é divulgar aquilo que poucos sabem, mas cuja importância para a história da arte visual brasileira é imensa.
 
Ismael Nery, O Encontro, 1928
 
 
“Em poucos anos percorrestes os séculos
Que medeiam entre o Gênese e o Apocalipse.
O germe da poesia, essencial ao teu ser,
Se prolongará através das gerações.
Eras sábio, vidente, harmonioso, forte:
Mas atrás de ti, que visavas o eterno,
Se erguiam o tempo e as muralhas da China.
Morres lúcido aos trinta e três anos,
Quando se fecha uma idade e se abre outra.
Morres porque nada mais tens que aprender.”
 
Trecho do poema “Ismal Nery”, de Murilo Mendes
MENDES, Murilo. Tempo e eternidade. 1935
 
 
 
por Juliano Mignacca
 
Coluna: Arte
 
 

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