Iberê Camargo, carreteis abstratos e os fantasmas do fim do dia

por Juliano Mignacca
O final de tarde é de outono. No horizonte sob o rio Guaíba em Porto Alegre, uma explosão de cores. Tons quentes cortinam o crepúsculo que insiste em penetrar pelo céu da cidade. Penso em William Turner e Claude Monet. Avanço um pouco mais e aqui estou em frente à Fundação Iberê Camargo. Desvio meus pensamentos para esse ilustre pintor gaúcho. Subo as rampas labirínticas desse museu projetado pelo arquiteto português Álvaro Siza Vieira. No terceiro andar, a exposição Diálogos no Tempo de Iberê Camargo (1914-1994). Esqueço a paisagem lá fora. Do lado de dentro, na entrada da sala, alguns estudos para a elaboração da tela Fantasmagoria IV, de 1987. Rabiscos e manchas coloridas que geraram o embrião do quadro ao lado. 
 
Iberê Camargo_Fantasmagoria IV_1987
Fantasmagoria IV, 1987
A fase tardia da pintura de Iberê evoca o sombrio. Seres humanos disformes num fundo chapado de tintas. Temperamento dramático? Alma perturbada pelo desfecho trágico em 1980? Após entrar na briga de um casal desconhecido nas ruas do Rio de Janeiro, Iberê sacou seu revolver e matou a tiros o homem. Foi absolvido por legítima defesa.  Tragédias à parte, a paleta de Iberê já vinha impregnada de tensão muito tempo antes. Na década de 1960, mergulhou no abstracionismo sobre fundo escuro. Denso e gestual. Textura da matéria que saltam aos olhos. 

 

ibere carreteis foto
 
A pintura abstrata surgiu da elaboração continua do objeto de curiosidade mais notório do Iberê: os carreteis de linha. Esse pequeno brinquedo de infância tornou-se uma marca. Sua assinatura. Pintou carreteis sobre a mesa, ora equilibrados uns sobre os outros, soltos, em movimento, desfigurados, até transcenderem à abstração.  A mostra é apenas um recorte do vasto acervo de mais de cinco mil obras que a intuição Iberê Camargo possui. Mas foi o suficiente para me apresentar algo inédito – as paisagens aquáticas dos anos de 1940, início de sua carreira. A experiência diante das telas altera quando se distancia ou se aproxima. A retina procura deter a melhor impressão das pinceladas rápidas e certeiras. Cor. Camadas verdes da mata refletem sobre a superfície de córregos, lagos ou rios. Sombra e luz. Lodo e barro das profundezas aquáticas. Espelho do selvagem, do intocado. Iberê do início. Iberê do fim. Retornou ao tema paisagem antes de morrer de câncer.   
 
ibere_paisagem_1941
 
Saio do museu. Sigo pela orla do Guaíba. Metade de mim, impregnado pelas últimas cores que dissipam sobre o rio. A outra, entorpecido com as entranhas da natureza reviradas pela paleta de Iberê Camargo. Impossível terminar o dia indiferente.  
 
por Juliano Mignacca
 
Iberê_Carreteis-1959
 
 
Iberê_Carreteis
 
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