por Matheus Arcaro
O século XX e seus fenômenos históricos tais como o fracasso do socialismo real e as duas grandes guerras, impuseram difíceis questões aos pensadores, em especial, aos marxistas. A principal: deve-se abandonar o projeto comunista ou preservar o potencial crítico da teoria de Marx?
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Adeus Lenin!, de Wolfgang Becker, 2003
Nesse contexto de incertezas, funda-se, em 1923, a Escola de Frankfurt. Com inspiração inicial marxista, incorporou diversas contribuições filosóficas, sociológicas e psicanalíticas para construir sua teoria crítica. Das questões atinentes ao seu tempo, uma em especial inquietava a esses filósofos: por que não se cumpriu a expectativa iluminista de emancipação da humanidade pela razão?
Hebert Marcuse (1898-1979) foi figura central de Frankfurt. O cerne de sua principal obra “Eros e Civilização” é também uma pergunta: seria possível uma sociedade não-repressiva?
Para responder a isso, Marcuse recorreu a dois autores de peso: fez a intersecção dos conceitos freudianos com aspectos da teoria marxista, a saber, interpretou filosoficamente “A Civilização e seus Descontentes” de Freud e a confrontou com a sociedade capitalista contemporânea.
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Cidadão Kane, de Orson Welles, 1941
Vamos à obra de Freud: o homem é constituído, basicamente, por dois instintos primários: Eros e Thanatos. Eros é a energia libidinal, o princípio de prazer. Thanatos é a inclinação à destrutividade, pulsão de domínio, de morte. Apesar de opostos, ambos têm procedência comum: o desejo de eliminação da tensão; a vontade de retroagir ao estado inorgânico, anterior à vida.
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O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, 1957
O aparelho mental humano (estrutura psíquica) é dividido em: ID, EGO e o SUPEREGO. O ID corresponde àquilo que é mais primário no ser humano; domínio do inconsciente, das pulsões, das gratificações. EGO é o mediador entre o ID e o mundo exterior; a percepção da diferença entre o EU e o mundo. Por fim, o SUPEREGO é a interiorização da repressão inicialmente personificada na figura paterna. É responsável pela renúncia de alguns desejos.
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Terra em Transe, de Glauber Rocha, 1967
Cabe-nos, então, mostrar como Freud faz a passagem do Pai ao Superego (assumida de um ponto de vista simbólico). No princípio das civilizações, o comando era exercido por um Pai Primordial. Este detinha o monopólio das mulheres do grupo e impunha o trabalho aos filhos. Os filhos nutriam um sentimento ambivalente pelo pai: ora afeto, já que a sua presença promovia unidade e segurança ao grupo, ora revolta, pela imposição das restrições. Aqueles que ameaçassem a soberania despótica eram excluídos. Em dada passagem, os filhos exilados se rebelam, assassinam o pai e o devoram. O poder, então, é assumido pelo clã de irmãos. Entretanto, o pai é divinizado e interioriza-se o tabu. Surge o sentimento de culpa. Eis o superego; eis a repressão.
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A Fita Branca, de Michael Haneke, 2009
Marcuse parte da repressão freudiana para fazer o apontamento de seu conceito de mais-repressão da sociedade contemporânea. Como o próprio nome indica, mais-repressão é a repressão adicional, que excede o necessário à civilização e é ensejada pela dominação de alguns homens sobre outros. Nas sociedades primitivas era preciso a repressão devido à carência tecnológica. Como observa Freud, se não houvesse repressão, a vida não seria possível, já que os homens, entregues ao princípio de prazer, matariam uns aos outros. Mas o que Freud não observou, segundo Marcuse, é a repressão social (mais-repressão). Na sociedade contemporânea capitalista, na qual a abundância tecnológica dispensaria a repressão originária, emerge a mais-repressão, fundada no trabalho alienado. A dominação não é mais do pai primordial, mas sim impessoal e objetiva concretizada no Principio de Desempenho (que passa a ser o Princípio de Realidade). Os homens são concebidos por suas funções econômicas. As posições sociais são definidas pelo desempenho. As preocupações contemporâneas (como por exemplo, reconhecimento social) nada têm a ver com o Ser do homem.
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Clube da Luta, de David Fincher, 1999
O controle, a repressão, desloca-se do campo instintual para o controle da consciência e é de tal força que o indivíduo e o todo são a mesma coisa. O superego é automatizado com a substituição das relações clássicas com os pais pelas agências extra-familiares de socialização, como os meios de comunicação de massa. Substitui-se o patrão pela dominação impessoal. Mesmo quem “manda”, obedece às regras do sistema.
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O Lobo de Wall Street, de Martin Scorsese, 2013
Controle há também sobre o tempo liberado (não existe tempo livre) com a imposição do Principio de Desempenho mesmo nos momentos de lazer. Não há a possibilidade de o indivíduo entregar-se a si próprio ou retirar-se para um mundo diferente. O repertório de escolhas é superficial, restrito a opções de consumo. A liberação da sexualidade (visto como avanço por alguns) é somente aparente, circunscrita ao universo do consumo. À velhice cabe a mesma análise: foi redescoberta em suas possibilidades mercadológicas.
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Nebraska, de Alexander Payne, 2013
Enfim, a civilização contemporânea é a consumação plena do trabalho alienado e da negação humana. Tudo é mercadoria, inclusive o homem e suas relações.
Diante de um quadro tão desolador, como fica a pergunta que norteia a obra de Marcuse? E então, é possível uma sociedade não-repressiva?
Ele diz que sim.
Recapitulando: para Freud, a ausência de repressão é uma impossibilidade para a vida social, pois implicaria na desorganização da produção econômica e na renúncia à cultura, já que os homens viveriam numa busca desenfreada pelo prazer, destruindo uns aos outros.
Marcuse, no entanto, observa que a repressão instintiva é exógena, ou seja, é exterior ao homem. Assim, modificados os moldes (a realidade empírica), é possível suprimir a repressão.
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Felicidade, de Todd Solondz, 1998
Mas, como mudar tais moldes?
Reconciliando o Princípio de Prazer com o Principio de Realidade, na erotização das relações sociais, morais e na erotização da razão. A tecnologia avançada propicia a redução do tempo destinado ao trabalho. Obviamente, haveria uma queda nas opções (não se poderia escolher entre 40 modelos de carros, por exemplo). Mas a ampliação das gratificações psíquicas seria inestimável. Instinto sensual transformado em Eros de uma civilização não repressiva.
E quanto ao instinto de morte?
Seria neutralizado visto que se origina de uma vida desagradável. Com a preponderância do Princípio de Prazer ao Princípio de Realidade, a pulsão de morte seria suprimida. Vale ressaltar, como adendo, que “Eros e Civilização” data de 1955. O próprio Marcuse, em obras posteriores, não se mostra tão otimista.
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Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, 1971
Matheus Arcaro é mestrando em filosofia contemporânea pela UNICAMP. Pós-graduado em História da Arte. Graduado em Filosofia e em Comunicação Social. É professor, artista plástico e escritor, autor do romance “O lado imóvel do tempo” (Patuá, 2016) e do livro de contos “Violeta velha e outras flores” (Patuá, 2014). Está lançando Amortalha, livro de contos, também pela Patuá.
Pauta e texto: Matheus Arcaro
Edição de imagens: Isso Compensa
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