Ler é muito perigoso!

por Matheus Arcaro

 

Dos diversos instrumentos utilizados pelo homem,

o mais espetacular é, sem dúvida, o livro.

Jorge Luis Borges

Imagem do filme “Fahrenheit 451”, de François Truffaut, 1966

Um questionamento que escuto com frequência é: “Por que estamos lendo menos atualmente?” É notório que, na pergunta, há vários pressupostos; o mais evidente é que líamos mais do que atualmente. Sim, há pesquisas neste sentido. Contudo, há pesquisas que apontam o oposto. Uma delas, realizada pelo Ibope, mostra que a média de livros lidos no Brasil por ano subiu de 4 em 2011 para 4,96 em 2016. A paradoxalidade das pesquisas não esvanece um aspecto: sob o prisma histórico, sempre lemos pouco. E isso não se restringe ao Brasil. Obviamente que, se compararmos os dados de um país europeu com dados tupiniquins, a diferença é brutal. Porém, isso não significa que eles passem a vida devorando páginas: na França, país com fama de muitos leitores, a média em 2016 foi de 11 livros lidos.

Fato é que, ao longo da história, a leitura nunca foi bem vista pelo status quo, pela elite, pelo Estado e pelas instâncias que detém o poder. O Index Librorum Prohibitorum, lista de livros proibidos da Igreja Medieval e, mais recentemente, a queima de livros pelo regime nazista são dois eventos que poderíamos aqui evocar. Se bem que não há necessidade de acontecimentos extremos para corroborar nosso argumento: basta pensarmos que, no Brasil, independentemente da corrente ideológica que ocupou o poder, nunca houve um programa sério de estímulo à leitura para criação do pensamento crítico a partir de fundamentos estéticos.

 

Imagem do filme “Fahrenheit 451”, de François Truffaut, 1966.

Sob uma ótica metalinguística e ficcional (mas não menos verdadeira), várias obras retratam este tema. Duas delas: Fahrenheit 451, de Ray Bradbury e O Nome da Rosa, de Umberto Eco.

A primeira, publicada em 1953, nos apresenta um cenário futurístico, distópico (impossível não lembrarmos de “1984”, de George Orwell e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley), no qual os livros são proibidos. A possiblidade de se expressar, aos poucos, vai sendo suprimida e opiniões críticas são consideradas contrárias à ordem social. Qualquer pessoa flagrada lendo é confinada ao hospício. Os livros são apreendidos e carbonizados pelos “bombeiros”. O título do romance faz alusão à temperatura (em graus Fahrenheit) da queima do papel.

 

Imagem do filme “O Nome da Rosa”, de Jean-Jacques Annaud, 1986

A segunda, O Nome da Rosa, é a obra que tornou Umberto Eco mundialmente conhecido em 1980, ano de sua publicação. O romance se passa na Itália, em 1327. Guilherme de Baskerville, frade franciscano, recebe a missão de investigar mortes misteriosas em uma abadia. O cerne do enredo é um dogma da igreja medieval: o riso como pecado. De modo sucinto – e para não prejudicar os que ainda não leram a obra – podemos dizer que as mortes estão relacionadas a uma biblioteca, mais especificamente, a uma obra de Aristóteles sobre a comédia.  Em termos simples: um livro que poderia desmoronar séculos de “seriedade” doutrinal. Aliás, o próprio título do romance é significativo: “o nome da rosa” era uma expressão usada na Idade Média em alusão ao infinito poder das palavras.

As duas obras, embora expressivamente distintas, nos mostram que os livros são perigosos. Perigosos para quem? Ora, para quem não deseja que haja emancipação intelectual.

 

Imagem do filme “O Nome da Rosa”, de Jean-Jacques Annaud, 1986

Immanuel Kant, num ensaio publicado em 1783, intitulado “Resposta à pergunta: o que é Esclarecimento?”, nos convoca à emancipação, ou seja, sair da menoridade: romper os grilhões das instituições e dos dogmas religiosos e “pensar por si”. “Ouse saber” é o lema do esclarecimento. Tal tarefa não é fácil, evidentemente. Em vários aspectos, faz-se confortável alguém ou algo decidindo por nós. Contudo, pensar por si é sinônimo de liberdade que, por sua vez, é sustentáculo da “dignidade da pessoa humana”: quanto mais exercemos nossa liberdade, mais humanos somos.

Com o auxílio de Kant, fazemos, então, coincidir conhecimento e ética: o exercício da liberdade é aprimorado no “uso público da razão”, sob a forma de livro. A emancipação passa necessariamente pela leitura. Não apenas leitura de livros, mas leitura de mundo.

E ler o mundo contemporâneo é compreender que, para estimular a leitura, não é eficaz demonizar a tecnologia. A tecnologia está dada e não há como recuar. Uma das alternativas para educadores, escritores e estudiosos é trazê-la para o lado de cá do combate. Pode até ser que, num futuro próximo, não exista mais esse objeto com páginas sobrepostas. Entretanto, isso não significa que o livro, como criação humana, acabe. Apenas muda-se a plataforma, como se passou do papiro à impressão. As novas tecnologias, embora possam ser prejudiciais em alguns aspectos, contribuem para a disseminação de obras clássicas e para o conhecimento de novos autores. A grande questão é saber filtrar, o que, evidentemente, passa pela qualidade da educação. Mas aí entramos em outra seara…

 

Rene Magritte, “La Lectrice Soumise”, 1928

 

Matheus Arcaro é mestrando em filosofia contemporânea pela UNICAMP. Pós-graduado em História da Arte. Graduado em Filosofia e em Comunicação Social. É professor, artista plástico e escritor, autor do romance “O lado imóvel do tempo” (Patuá, 2016) e do livro de contos “Violeta velha e outras flores” (Patuá, 2014). Está lançando Amortalha, livro de contos, também pela Patuá.

 

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