Søren Kierkegaard e o caos dentro do coração

por Homero Nunes
 
Copenhague é a cidade das bicicletas, da civilização, de Søren Kierkegaard. Lugar da liberdade individual, reino da organização, asséptica. Ética protestante. Também comporta o caos dentro de si, na cidade livre de Christiania, comuna independente ocupada, área invadida desde os anos 60. Os hippies e anarquistas românticos conseguiram criar no coração do cosmos o reduto do caos. Contradição em forma de ilha. Algo de estranho no reino da Dinamarca.
Estranho também é logo ali ter nascido o existencialismo, ainda na primeira metade do século XIX, muito antes de Christiania. Do frio báltico, brotaram as ideias que trariam a angústia, a crise, a desilusão de gerações. Kierkegaard foi o primeiro dos existencialistas, colocando a angústia no centro da filosofia: O Desespero Humano.
Sartre, Heidegger, Husserl e todo o pensamento humanista do século XX deveriam vislumbres a Kierkegaard. Um menino sufocado pelo pai luterano, negociante rico, pessoa séria, sem diversões, sem brechas a tentações mundanas. Queria que o filho fosse comerciante, que levasse adiante os negócios da família. O “espírito do capitalismo” era sinal da predestinação, da salvação da alma e da família, a prova do caráter pelo trabalho árduo. Sem escusas. Na escola deveria ser sempre o terceiro da classe, para não deixar a vaidade aflorar, para não chamar atenção. A inteligência maior, a aptidão para o conhecimento, a aprendizagem fácil não era desculpa para a soberba. Devia errar de propósito para ser o terceiro da turma, nem o segundo servia. Na juventude foi mandado à viagem, em missões comerciais de grande responsabilidade, para aprender a negar o ócio, o negócio. Portos e docas, estivas e galpões empoeirados. Gentes rudes, paus mandados, burgueses ambiciosos, senhores de olhos de vidro e os donos do mundo. Devia conhecer a todos, sentir a dureza da vida para ser capaz de assumir a cadeira quando lhe faltasse o pai. Única dimensão da vida, a responsabilidade.
Kierkegaard por Athamos Stradis 2013
 
 
Mas queria “o grande Manitou dissimulado atrás do destino” que o jovem Søren guardasse o caos dentro de si, em seu coração. Com a morte do pai, a queda do totem, viu-se riquíssimo em um mundo de liberdade. Tabernas, bordéis, álcool, mulheres más. Pior, tinha agora o pensamento livre. Não mais era obrigado aos números e tabelas, aos livros-caixa, nada. De madrugadas em dias, Kierkegaard correu solto na fase estética da vida, sorvendo prazeres objetivos, tratando tudo como meio de si, todos como coisas. Estético, voltado para fora, hedonista no verão da juventude. Enfim, apaixonou-se: Regine.
Moça de família, respeito puro, cheia de amarras morais, protestante também. Linda, em forma e jeito, educada para a eternidade do compromisso. Ele lhe caiu aos pés, aos braços dados no passeio público. Tiveram uma relação à moda antiga, sem carne, muita sedução em longos diálogos. Dias felizes demais para quem tinha o caos no coração, insuportáveis. A felicidade se tornou angústia, o jovem Søren viajando agora dentro de si, buscando construir a si mesmo, iniciando a fase ética da vida. Delirou que aquilo tudo era fachada demais, que ele não era merecedor de Regine, que a usava como coisa, reificando a relação de amor. Deu à melancolia, em dias sombrios, gelados como o inverno báltico. Por fim jogou tudo ao vento, deixou-a em prantos, em decepção traumática quando desfez o noivado sem explicações. Não era nada com ela, dizia, era ele mesmo o culpado de tudo. Desculpa fatal, ainda hoje bastante usada, descrita no livro que tentou explicar: O Diário de um Sedutor. Nele, autoflagelava-se em melancolia e desespero ao dizer que o dever era maior que ele, que precisava fazer a coisa certa a qualquer custo, inclusive o sacrifício de si. Tentando ser ético, buscando o autoconhecimento, encontrou o monstro interno, o caos que habitava o coração. Não era digno de Regine, a fina flor do sentimento mais elevado do universo. Precisava sofrer tudo, talvez o suicídio, para purificar os princípios que o guiavam, racionalmente, filosoficamente.
Mas a razão não era suficiente para acalmar a alma, caiu em desespero. O desespero mais puro, aquilo que todos os homens têm em comum um dia na vida, o desespero humano, doença mortal. Pensamentos cortantes, pulsos, gargantas, cordas, alturas, venenos e o éter. Confiava à racionalidade a resposta que precisava, segurava-se à razão como âncora, firmeza colossal desde Platão, desde Sócrates. Mas continuava afundando, conhecer a si mesmo era enfrentar o abismo. A ironia socrática era demasiado cruel naquele momento. Dilacerado em desespero.
Enfim, deu “um salto no escuro”, além da razão, muito além do estético ou do ético, na religião. Fé cega, faca amolada. Cortou a angústia em pedaços, arrefeceu o coração, dominou o caos no salto irracional para o cosmos. Deus foi quem salvou Kierkegaard do desespero. O remédio para as angústias, a metadona, o que Marx chamaria em anos próximos de “o ópio do povo”.
 
O existencialismo cristão de Kierkegaard seria adiante refutado pelos ateus do existencialismo francês, mas como angústia do próprio pensamento existencial. Um desespero que todos teriam, mas sem a saída do cristianismo. De qualquer forma, Søren Kierkegaard deixaria a fase ética martelando em todas as cabeças, a responsabilidade na construção de si, a condenação da liberdade… ao ponto que Albert Camus um dia afirmou que “a única questão verdadeiramente filosófica é o suicídio”. Na poética de Shakespeare: “ser ou não ser, eis a questão”.
Na Copenhague secular, as torres únicas das igrejas protestantes ainda se erguem sobre o horizonte de prédios históricos da época de Kierkegaard, o inverno rigoroso ainda esfria as relações e a cerveja, a ética protestante configura como nunca o “espírito do capitalismo”, mas o caos ainda habita o coração da cidade, em Christiania. Muitas angústias na vidinha, muitas crises existenciais na metrópole, muito controle social e tudo certinho demais, todo mundo atravessando na faixa. Mas o caos está a ruas de distância de casa, em hippies fugidos de Woodstock, anarquistas românticos de histórias em quadrinhos, hortas comunitárias, sem polícia, sem leis, tudo ao léu. Crises existenciais resolvidas com escolhas livres. Ou sexo, drogas e rock n’ roll. Ou zen budismo. Ou em fazer o que se quer, a qualquer hora. Existencialismo puro no humanismo hippie: cada um que construa a si mesmo, enfrentando o caos de dentro, eticamente. Todos condenados à liberdade, bicho. Logo na entrada está a famosa placa: “você está deixando a União Europeia – Bem-vindos à cidade livre de Christiania”.
 
 
por Homero Nunes
De Kierkegaard, compensa:
O Desespero Humano, 1849
O Conceito de Angústia, 1844
Temor e Tremor, 1843
O Diário de um Sedutor, 1843
 

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