Onde há fumaça, há fogo!

por Matheus Arcaro

Esta conhecida máxima é um exemplo que, apesar de trivial, cumpre bem o papel que aqui lhe cabe: ressaltar como alguns pensamentos se petrificam, entram na “tradição” e passam a fazer parte das nossas vidas. Tornam-se verdades, sem passar pelo questionamento sobre a sua fundamentação. Quantas e quantas vezes não afirmamos “isto aconteceu por causa daquilo”. Mesmo sem saber, estamos fazendo uso de um caro conceito filosófico, o de causalidade, que afirma que todo efeito tem, necessariamente uma causa.

Andre Derain, Estaque, 1905

Desde Aristóteles (século V a.C.), a causalidade tem fundamentado vários sistemas filosóficos. Até que, no século XVIII, o pensador David Hume a questiona. Hume não chega a negar a existência da relação causal. Nega simplesmente que se possa ter conhecimento dessas realidades e atribui ao hábito mental (hábito poderia ser entendido como vício) a afirmação dessa concepção. Dois exemplos: se perguntado por que o sol nascerá amanhã, provavelmente responder-se-ia que ele voltará a nascer porque há milhares de anos, todos os dias isso vem acontecendo.  Assim, incorre-se numa falácia (erro no raciocínio ou argumentação), a falácia da falsa causa que considera que um acontecimento é causa do outro simplesmente porque um antecede o outro (ontem aconteceu, hoje acontece, amanhã deve acontecer). Outra falácia comum é considerar a causa de um efeito algo que não é sua causa real, por exemplo: ao tomar um remédio à base de erva, o senhor Sebastião, depois de duas semanas, curou-se de um resfriado (isso aconteceria com ou sem o remédio).

Andre Derain, Charing Cross, 1906

A causalidade é capaz de produzir uma conexão a ponto de nos dar certeza de que a existência de um objeto foi seguida ou precedida de outra existência. Através dela, afirmamos a existência de objetos que não vemos nem ouvimos. Pegando como exemplo o ditado que intitula esse texto: a relação de causalidade entre fogo e fumaça me faz acreditar que quando vejo a fumaça, deve haver fogo em algum lugar que eu não veja. Mas não poderia ser neblina ou, até mesmo, uma máquina de fumaça?

Andre Derain, Música, 1904

A noção de causalidade, como vimos, acontece devido ao hábito. A repetição da sequência de duas impressões faz que cada uma delas comunique a “vivacidade” de outra idéia e nos leva a crer que a outra também existe. Se a existência de uma é acompanhada pela crença na existência da outra, convencemo-nos de que uma não pode existir sem a outra. Convencemo-nos de que entre elas há uma conexão necessária.

Andre Derain, Collioure, 1905

A relação causal é intuída, não é captada imediatamente (sem mediação).  Essa tese é evidente para os objetos que conhecemos pela primeira vez: “Adão, ainda que tivesse sua racionalidade totalmente desenvolvida, não poderia ter inferido da fluidez e da transparência da água que esta o poderia afogar”. Nem mesmo para os objetos que já conhecemos experimentamos a ação causal: quem poderia intuir o poder nutritivo de um pão? Os sentidos nos informam sobre algumas de suas propriedades (cor, sabor, peso, aroma), mas se nos fosse dado outro corpo semelhante, desprovido de nutrientes, certamente não perceberíamos.

Andre Derain, A Ponte, 1905

O intuito deste breve artigo não é que entendamos perfeitamente a lei de causalidade. Esta foi utilizada como pano de fundo para fomentar nossa reflexão, para que coloquemos em xeque o que temos como verdade absoluta. É preciso desconfiar, como nos ensinaram os céticos. É preciso colocar o mundo entre parênteses. É preciso se despir de certos hábitos para evitar conceitos cristalizados e, sobretudo, preconceitos.

Andre Derain, A Dança, 1906

As imagens que ilustram este post são de Andre Derain (1880 – 1954), pintor fauvista, francês. Sem rima ou relação de causalidade com o texto.

Matheus Arcaro é mestrando em filosofia contemporânea pela UNICAMP. Pós-graduado em História da Arte. Graduado em Filosofia e em Comunicação Social. É professor, artista plástico e escritor, autor do romance “O lado imóvel do tempo” (Patuá, 2016) e do livro de contos “Violeta velha e outras flores” (Patuá, 2014). Está lançando Amortalha, livro de contos, também pela Patuá.

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