A trajetória profissional de Peter Brook, figura exponencial da modernidade teatral, apresenta traços singulares, próprios de um encenador que, formado na lida do teatro comercial londrino, posteriormente se tornaria a encarnação, em sua arte, de um experimentalismo arrojado. Partindo de um ambiente em certo sentido “provinciano”, pois circunscrito aos limites culturais de seu país, aos poucos ele foi se transformando no mais “cosmopolita” dos homens de teatro de seu tempo. Primeiramente, ao encetar uma bem-sucedida carreira internacional, montando espetáculos em três dos maiores centros artísticos do Ocidente (Londres, Paris e Nova York); depois, pelo seu empenho na criação do Centro Internacional de Pesquisa Teatral (CIPT), instituição sediada na França de pendor, por assim dizer, multiculturalista.
Peter Brook nasceu na capital inglesa em 21 de março de 1925, sendo o segundo filho de um casal de imigrantes russos. A grafia original de seu sobrenome é na verdade Bryk, lembrando que o som do y em russo equivale ao do u em português. Por isso, na França, quando seus pais passaram por lá,tiveram o nome de família alterado para Brouck. Posteriormente, ao se mudarem para a Inglaterra, lhes foi imposta por um oficial da imigração uma grafia correspondente à fonética da língua inglesa.
Em seu livro de memórias, lançado em 1998 e intitulado Fios do Tempo (Threads of Time), Brook relata sua primeira experiência teatral, acontecida em uma livraria da Oxford Street, onde sua mãe o levara, ainda pequeno, “para assistir a um espetáculo para crianças em um teatro de brinquedo do século XIX”. Na adolescência, adquiriu uma paixão especial pelo cinema, embora se sentisse atraído pelo teatro em razão, sobretudo, dos bastidores, que lhe capturavam a imaginação mais do que os espetáculos em si. De qualquer forma, a cinefilia o acompanharia por toda a vida, a ponto de ele ter se tornado, também, um cineasta respeitável, autor de 12 filmes.
A direção teatral surgiu em sua vida no ano de 1942, época em que entrou para a Universidade de Oxford. Decepcionado com as sociedades dramáticas locais, que não lhe concediam nenhum espaço, Brook aproveitou as férias em Londres para encenar, com um grupo de amigos, o Fausto de Christopher Marlowe, levado em um pequeno teatro perto da Hyde Park Corner. Para esse trabalho de estreia, o aprendiz de encenador contou com a inusitada assessoria de Aleister Crowley, o temido mago e ocultista britânico, que atuou na produção como “consultor de magia”.
Admirador de Tyrone Guthrie, diretor do Old Vic, Brook o procurou em busca de uma oportunidade para trabalhar lá. Ouviu do veterano encenador as seguintes palavras: “Volte quando tiver feito algo em outro lugar”. Batendo, de porta em porta, nos principais teatros de Londres, após inúmeras recusas, lhe foi concedida uma chance num “teatro-miniatura” chamado Chanticleer, localizado em Kensington. A peça escolhida para essa ocasião foi Máquina Infernal, de Jean Cocteau, pois, segundo Brook, “qualquer coisa que viesse da França possuía um particular charme intelectual”.
Apesar de o espetáculo ter causado certa agitação, obtendo críticas positivas, os esperados convites de trabalho vindos do West End londrino não apareceram. Para manter-se na carreira, Peter Brook aceitou dirigir uma versão de Pigmaleão destinada a sair em turnê pelos campos do exército britânico, no auge do esforço de guerra contra o nazifascismo, para proporcionar entretenimento às tropas. Mesmo se tratando de uma realização sem nenhum requinte, ela chamou a atenção de um diretor de grande sucesso no West End (William Armstrong), que indicou o trabalho de Brook a amigos.
Graças a esse apadrinhamento de Armstrong, o jovem encenador de ascendência russa foi chamado para dirigir uma produção em Birmingham (Homem e Super-Homem, mais um texto de Bernard Shaw), e, algum tempo depois, realizar uma montagem de Ring Round the Moon (de Jean Anouilh), agora na tão aguardada região do West End. Ali Brook consolidaria sua carreira, especialmente após o sucesso obtido com o espetáculo Dark of the Moon (1948-49), escrito por uma dupla de dramaturgos estadunidenses, com o qual ele conseguiu, ao mesmo tempo, surpreender e assustar o público mais tradicional do teatro de Londres.
A partir daí, é possível afirmar, sua ascensão no universo teatral inglês seria vertiginosa. Além de encenar, em duas temporadas consecutivas, para o tradicional festival de Stratford–upon–Avon, onde se aprimorou nas montagens de Shakespeare (Trabalhos de Amor Perdidos e Romeu e Julieta), Brook conseguiu adentrar em outra cidadela tida como inexpugnável: o Covent Garden, mais precisamente na Royal Opera House, o “templo” do teatro lírico londrino. O reconhecimento profissional obtido nos palcos nacionais lhe facultaria até mesmo um convite para ser crítico de balé no jornal Observer, função que exerceu durante algum tempo.
Assumindo, aos 22 anos, o cargo de “diretor de produção” na Royal Opera House, o ainda jovem encenador teve que se deparar com um ambiente consideravelmente diferente do teatro declamado, no qual se iniciara. Conforme revelaria muitos anos depois de terminada essa experiência, em seu livro O Espaço Vazio (1968), a Grande Ópera seria para Brook “(…) o Teatro Moribundo levado ao absurdo. Ela é um pesadelo de grandes rixas sobre minúsculos detalhes; de anedotas surrealistas ao redor da mesma asserção: nada deve mudar”.
Por mais que objetivasse, ao se introduzir em tal seara, realizar um choque naquela instituição adormecida e antiquada, logo Brook percebeu que, no mundo do bel canto, a tradição, aliada a determinados códigos muito peculiares, se mostrariam fortíssimos inibidores para qualquer investida cênica mais ousada. As primeiras contendas começaram quando, querendo se desfazer dos onipresentes telões pintados que compunham os cenários de então, substituindo-os por plataformas de madeira, Brook teve seu pedido sobejamente negado. O uso de cenografia arquitetônica, nos moldes defendidos por teóricos como Gordon Craig e Adolphe Appia, ainda demoraria alguns anos para ser introduzido na Royal Opera House, em razão de seu forte apego à cenografia pictórica.
Certa vez, em uma montagem de Boris Godunov, na qual Peter Brook ousara propor o aparecimento de uma cúpula circular saída do urdimento, evocando algo como um relógio medieval, ele acabou comprando uma briga feia com o baixo búlgaro Boris Christoff, especialmente convidado para interpretar o papel principal. Recusando-se a dividir o seu brilho, em um momento capital do libreto, com aquela estrutura metálica, Christoff protagonizou um autêntico chilique contra semelhante expediente. Basta informar que ele ameaçou se ausentar da apresentação caso o impacto proporcionado pelo objeto não fosse, ao menos, minimizado.
Em um meio tão histérico como o da ópera, e o adjetivo é do próprio Peter Brook, não haveria como ele permanecer ali durante muito tempo. A montagem de Salomé, realizada em 1949, seria a “gota d’água” para a sua saída da Covent Garden Opera Company. Novamente, o pomo da discórdia relacionava-se à cenografia do espetáculo. Convidado por Brook para desenhar o cenário e o figurino de Salomé, Salvador Dalí apresentou um projeto que, não obstante ter agradado ao diretor, simplesmente ultrajou o restante da equipe de produção. Aos poucos, cada departamento foi podando as inovações trazidas por Dalí a uma proporção aceitável, diluindo, assim, o resultado do trabalho como um todo até ele se tornar inofensivo. Na noite de estreia, Brook foi vaiado por conta de um escândalo que nem chegou, em verdade, a acontecer, e no dia seguinte ele seria demitido.
Pouco tempo depois desse revés, que parece não ter prejudicado sua carreira, um encontro com Bertolt Brecht, acontecido em Berlim, marcaria a vida do diretor inglês. O ano era 1951, e, por causa de uma série de fatores políticos, os dois tiveram que se encontrar às escondidas em uma sala particular de um hotel, onde jantaram às custas do exército. Em Fios do Tempo, o autor afirma que sua fascinação por Brecht era devida não às teorias encampadas pelo teatrólogo alemão, mas à sua figura humana. Mesmo não se entusiasmando tanto pelas ideias de seu colega, Brook não deixou de se encantar com as produções que viu do Berliner Ensemble (Mãe Coragem e O Preceptor), asseverando que tais experiências foram decisivas no levantamento de novas questões acerca da representação, todas muito distantes do teatro de seu país.
Por volta de 1953, começaram a aparecer as primeiras propostas de trabalho em Nova York, que lhe possibilitaram ali dirigir uma ópera (Fausto, de Charles Gounod), uma peça (House of Flowers, de Truman Capote) e um filme para a televisão (Rei Lear). Embora as primeiras impressões de Brook acerca da “capital do mundo” não tenham sido muito alvissareiras, suas relações com o teatro novaiorquino prosperaram, pois, a partir de então, seguiram-se outras produções suas em terras norte-americanas.
Pouco depois desses contatos inaugurais de Brook com a Broadway e a Metropolitan Opera, ele começou a se aproximar de outra cidade dotada de uma cena teatral poderosa, onde, mais tarde, estabeleceria residência definitiva: Paris. A ligação de Brook com a “cidade luz” remonta à sua infância, quando, na companhia dos pais, ele visitou o Museu do Louvre. Porém, em relação ao teatro propriamente dito, o que mais o atraía na capital francesa, de modo que ele se dispusesse a atravessar, com frequência, o Canal da Mancha, seria o modo de produção que ali prevalecia, muito diferente ao de Londres.
A comparação entre uma e outra praça exige a transcrição literal das palavras de Brook: “No Covent Garden eu assisti ao irascível gerente de produção de barba ruiva jogar fora projetos belos, mas imprecisos, porque ele imediatamente intuíra que haviam sido criados por ‘artistas’ em vez de ‘homens práticos’. Na França, entretanto, o trôpego gênio do cenário, Christian Bérard, rascunhava uma ideia em uma toalha de mesa de papel em um café e a seguir entregava-a aos velhos e astutos machinistes do teatro para que solucionassem, para ele, os detalhes técnicos. Quando, na noite anterior à estreia, repentinamente ele decidia mudar tudo, isso não causava raivas, brigas ou barganhas de horas extras; ao contrário, eram necessárias apenas umas poucas garrafas de vinho tinto para que os mesmos machinistes trabalhassem felizes até o amanhecer, com uma genuína satisfação em contribuir com as suas habilidades para uma criação que eles amavam e compartilhavam. Esse era um modo de trabalho que eu conseguia entender”.
Sua introdução no meio teatral parisiense contou com a imprescindível ajuda de Simone Berriau, atriz francesa que, em 1943, assumira a direção do Teatro Antoine. Foi ela quem convidou Brook para encenar, em seu espaço, a peça Gata em Teto de Zinco Quente, de Tennesse Williams. Apesar de o espetáculo, estreado em 1956, não ter causado uma boa impressão no público local, ainda assim Berriau decidiu conceder uma nova chance ao diretor, contratando-o para a montagem de outro texto estadunidense (Panorama Visto da Ponte, de Arthur Miller). Com essa realização, Brook firmou de vez seu nome em Paris. À medida que os anos se passaram, conforme informado, ele se aproximaria cada vez mais da cidade, até decidir, em 1961, fixar residência lá.
Antes de isso acontecer, não se pode deixar de registrar, Peter Brook já havia realizado, há alguns anos, seu sonho juvenil de ser cineasta, atuando como diretor em uma produção inglesa (A Ópera do Mendigo, de 1953) e outra francesa (Moderato Cantabile, de 1960). Na primeira, baseada na peça homônima de John Gay, vivenciou nos bastidores uma guerra surda com o protagonista e coprodutor da obra, o ator Laurence Olivier. Tantas foram as rusgas entre os dois durante as filmagens, cada qual querendo impor a sua ótica em relação ao texto original, que, dois anos depois, quando voltaram a se encontrar na bem-sucedida montagem de Tito Andrônico, realizada em Stratford, apesar de as desavenças terem arrefecido, eles jamais conseguiriam travar uma relação de amizade. Já a segunda produção, baseada no romance homônimo de Marguerite Duras e realizada de maneira contrária aos austeros métodos de filmagem ingleses, serviu para consolidar o desejo de Brook de se estabelecer em Paris, vislumbrando a chance de trabalhar também no cinema francês.
Nessa mesma época, ao se envolver numa complicada montagem de O Balcão, que padeceu de inúmeras coerções políticas para se realizar, Brook começou a sentir a necessidade de formar um grupo de teatro, em boa parte devido a algumas conversas que teve com Jean Genet, o autor da peça. De acordo com o primeiro, somente pela obra de um grupo homogêneo seria possível, valendo-se de processos criativos mais longos, sair da rotina de uma representação convencional. No circuito de teatro comercial, por mais elevadas que fossem as ambições artísticas, essa barreira dificilmente seria superada.
Curiosamente, foi na Inglaterra que Brook encontrou, em um primeiro momento, as condições para desenvolver a trilha de um teatro mais experimental, que o levaria a produzir, em sequência, algumas das principais montagens de sua carreira, como Marat-Sade (1964, de Peter Weiss), US (1966, criação coletiva) e A Tempestade (1968). Isso aconteceu porque, ao ser convidado para dividir com Peter Hall a direção da Royal Shakespeare Company, em Stratford, Brook apresentou como condição a criação de uma unidade independente de pesquisa. Com o surgimento desse núcleo – denominado Teatro da Crueldade, em homenagem a Antonin Artaud – certas práticas preponderantes na relação do diretor com seus atores e atrizes foram substancialmente alteradas. Dispensando as peculiaridades do grupo e de seu animador, se pode afirmar que os novos expedientes introduzidos na ocasião se aproximariam disso hoje designado, no meio teatral, de laboratório cênico ou processo laboratorial de trabalho.
Finalizada a montagem de A Tempestade, espetáculo que contou, em seu elenco, com atores e atrizes vindos de diversos países, Brook começou a acalentar o projeto que daria origem, em 1970, ao Centro Internacional de Pesquisa Teatral. Mas, antes disso, era forçoso resolver um problema fundamental: como conseguir os recursos necessários para que o empreendimento pudesse se manter? A saída encontrada seria a aquisição de patrocínios privados. Após uma busca cansativa, na qual não faltaram lances de sorte, a desejada subvenção veio por intermédio da Fundação Anderson, pertencente a um empresário estadunidense do ramo de petróleo. Outras instituições que também se tornaram beneméritas do Centro foram as Fundações Ford e Gulbenkian.
Durante um curto período, o CIPT se instalou no Mobilier National, um depósito de mobília pertencente ao governo francês. Embora os primeiros passos tenham sido relutantes, pois não se sabia muito bem por onde começar, segundo Brook o que os movia não era o desejo de aprender, mas de desaprender, “para livrar-nos das habilidades apreendidas com muito esforço, de modo a descobrir algo a partir do mais inocente de nossos membros”. À procura de certos códigos e impulsos que se esconderiam nas matrizes das formas culturais, o grupo capitaneado por Brook, após algumas experiências em Paris, partiu em viagem pelo exterior. Uma viagem de pesquisa e não de excursão, ressalve-se, pois “na bagagem” não havia nenhum espetáculo acabado a ser apresentado.
Isso só veio a acontecer quando, depois de três anos de peregrinações, que incluíram longas temporadas no Irã, na Nigéria e nos Estados Unidos, o grupo retornou a Paris. Ali lhes foi oferecido pelo governo francês um velho edifício teatral que, à época, encontrava-se há 20 anos abandonado, o Théâtre des Bouffes du Nord. Uma vez reformado, ele se transformou na sede definitiva do CIPT, onde Peter Brook daria à luz algumas de suas obras mais representativas, como Timão de Atenas (1974), A Conferência dos Pássaros (1979) e A Tragédia de Carmen (1981). A direção do Centro ele só abandonaria em 2010, ao completar 85 anos de idade.
Ainda haveria muita coisa a ser mencionada sobre esse período da carreira de Brook, sem dúvida o mais profícuo de todos em razão de uma série de fatores. No entanto, para que outras facetas de sua personalidade artística sejam contempladas neste obituário, como algumas de suas principais proposições teóricas e o influxo de suas obras no teatro brasileiro, é imperioso proceder aqui a uma divisão temática. No intuito de remediar a incompletude das informações arroladas acima, ao final do texto encontram-se algumas referências bibliográficas básicas para quem quiser saber mais a respeito da trajetória profissional do ilustre encenador.
PETER BROOK NO BRASIL
O primeiro espetáculo de Brook a se apresentar no Brasil foi O Traje, em 2000, dentro da programação do Porto Alegre em Cena, um dos mais importantes festivais internacionais de teatro do país. Dois anos depois, A Tragédia de Hamlet seria apreciada por plateias paulistanas e cariocas, respectivamente no Sesc Vila Mariana e no Teatro Carlos Gomes.
Em 2004, Tierno Bokar integrou o Festival Internacional de Teatro, Palco e Rua de Belo Horizonte (FIT-BH), além de cumprir curtíssima temporada no Sesc Vila Mariana, em São Paulo. Em seguida (2005), novamente no Porto Alegre em Cena, foi a vez de se apresentar por aqui Os Dias Felizes, trabalho de Brook realizado fora do Bouffes du Nord. Em 2006, de novo em São Paulo, só que agora no Sesc Anchieta, mais uma obra dirigida por Brook pôde ser apreciada: Sizwe Banzi Está Morto. Em 2008, o público de quatro cidades brasileiras (Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Londrina) teve a oportunidade de assistir a Fragments, outra produção da lavra do encenador inglês.
A Flauta Mágica, de 2011, seria o penúltimo trabalho de Brook a excursionar pelo Brasil (Rio de Janeiro e São Paulo) e O Terno (2015), que tinha codireção sua, o último.
Seria possível identificar influências da obra de Peter Brook no teatro brasileiro? Embora se trate de uma pergunta difícil, que requereria um estudo acurado para ser respondida satisfatoriamente, a geração nativa de encenadores surgida na década de 1980 (Gerald Thomas, Cacá Rosset, Márcio Aurélio…) talvez tenha sido a mais receptiva a certas ideias e práticas que remontariam, de alguma forma, ao trabalho de Brook.
Levando-se em conta a trajetória profissional, a proximidade maior parece remeter ao nome de Antunes Filho, visto que este, assim como seu colega britânico, primeiro se consagrou no âmbito do teatro comercial para, em um determinado momento, abandoná-lo em prol da criação de um grupo de pesquisa continuada. No caso de Brook, o Centro Internacional de Pesquisa Teatral (CIPT); no caso de Antunes, o Centro de Pesquisa Teatral (CPT), mantido pelo Sesc-SP desde sua fundação, em 1982.
PETER BROOK COMO TEÓRICO
Assim como inúmeros outros encenadores, Peter Brook deixou uma vasta obra teórica, materializada em diversas publicações. A teorização parece ser uma necessidade dos que cultivam uma arte, em tese, destinada a se perder com a passagem do tempo, fruto de sua congênita efemeridade. Nesse sentido, a teoria serviria como uma espécie de paliativo contra o esquecimento, de modo que o trabalho de encenação, assim como acontece com a dramaturgia, pudesse ser registrado e, por conseguinte, revisitado pelas gerações futuras.
Dos livros mais teóricos e mais propriamente voltados à problemática da cena, O Espaço Vazio (também conhecido como O Teatro e seu Espaço, de 1968) e A Porta Aberta (1993) se destacariam como aqueles, de certo modo, imprescindíveis. No primeiro, baseado numa série de palestras proferidas por Brook em universidades britânicas, tem-se as célebres categorizações estipuladas pelo encenador em cada um dos quatro ensaios que compõem o volume: o teatro moribundo, o teatro sagrado, o teatro rústico e o teatro imediato.
O moribundo se caracterizaria, muito sumariamente, como aquele teatro incapaz de instaurar uma relação viva com o tempo presente, na maioria das vezes em virtude de seu apego a certos modelos e procedimentos ultrapassados – que os tornariam, por isso mesmo, alheios aos contemporâneos. Embora o conceito se confunda, em termos de juízo de valor, com o mau teatro, Brook ressalva que ele não seria, nem de longe, um corolário exclusivo de um teatro eminentemente comercial. Para o teórico, o mais moribundo dos teatros poderia ser surpreendido em obras consideradas vanguardistas ou em montagens de autores como Shakespeare, Molière ou Bertolt Brecht. No último caso, o problema estaria contido numa certa ideia de cultura associada à noção de tradição. Semelhante associação seria responsável pelo surgimento de uma ideologia esteticamente castradora,segundo a qual só existiria, por exemplo, uma única maneira de se encenar os dramaturgos mencionados.
Já o teatro sagrado, conforme se vê no primeiro parágrafo do ensaio a ele dedicado, seria “o Teatro Invisível-que-se-faz-Visível: a noção de que o palco seja um lugar onde o invisível pode aparecer e exercer uma profunda influência em nossos pensamentos”. De cunho metafísico, trata-se, em outras palavras, de um teatro cuja formatação proporcionaria aos espectadores(as) uma sensação de transcendência. Na ótica de Brook, circunscrita ao momento em que escreveu O Espaço Vazio (1968), três homens teriam se destacado contemporaneamente nessa busca: Merce Cunningham, Samuel Beckett e Jerzy Grotowski, respectivamente um coreógrafo, um dramaturgo e um encenador. A título de curiosidade, não custa informar que Brook, desde sua juventude, devotava uma grande admiração pela figura do místico armênio George Ivanovich Gurdjieff, fato que o levaria mais tarde, quando já era um diretor consagrado, a se embrenhar pelo campo do teatro sagrado.
A categorização seguinte, nomeada de teatro rústico, vem a ser, basicamente, o teatro popular, em suas variadas formas. Alguns traços essenciais dessa modalidade seriam o seu desprezo pela pompa do teatro tradicional, a sua despreocupação em obter uma unidade estilística e um certo gosto pela vulgaridade. Sua missão precípua: proporcionar alegria ao público sem deixar de lado, todavia, a energia militante que lhe é peculiar, direcionada por excelência contra a ordem das coisas. Como uma categoria não exclui necessariamente a outra, para Peter Brook a obra de William Shakespeare congregaria em suas contradições o rústico e o sagrado, o que explicaria boa parte de seu encanto por ela.
A série termina com o chamado teatro imediato, o oposto do teatro moribundo, por se manifestar em plena sintonia com o tempo em que se realiza. Seria, claro, o teatro no qual Brook depositava suas fichas. No ensaio onde se acham suas observações a esse respeito, a maioria de teor bastante generalizante, chama a atenção sua teoria sobre o espaço vazio, que ele depois desenvolveria mais em trabalhos como A Porta Aberta.
Entusiasta de uma cena despojada, traço estilístico que o aproxima, até certo ponto, de teóricos como Jacques Copeau ou Jerzy Grotowski, uma das pedras angulares da estética brookiana se liga ao uso de um tapete como área de representação. Dir-se-ia que esta seria, talvez, a principal marca de seu teatro. Sua “descoberta” remonta à viagem empreendida pelo elenco do CIPT à África na década de 1970. Quando seus integrantes, ao visitarem algum vilarejo remoto, apresentavam à comunidade as improvisações por eles desenvolvidas, era sobre um tapete que o faziam. A essa experiência Brook denominou The Carpet Show.
Em termos operacionais, assim se justificaria a introdução do tapete nas experimentações do CIPT: “Em nosso trabalho costumamos usar um tapete como zona de ensaio, com um objetivo muito claro: fora do tapete, o ator está na vida cotidiana, pode fazer o que quiser: desperdiçar a energia, fazer movimentos que não expressam nada em particular, coçar a cabeça, tirar um cochilo… Mas assim que pisa no tapete está obrigado a ter uma intenção definida, a estar intensamente vivo, pela simples razão de que há um público observando”.
Apesar de Brook não ter criado, como outros teóricos-encenadores, um pensamento teatral de caráter sistêmico, sua amplitude, aliada ao número considerável de grandes realizações que empreendeu, lhe garantiram um lugar de honra na história do teatro do século XX.
Por Rodrigo Morais Leite
Para saber mais:
BROOK, Peter. Fios do Tempo: Memórias. Tradução de Carolina Araújo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
______. O Espaço Vazio: Um Livro sobre o Teatro: Moribundo, Sagrado, Rústico, Imediato. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Rio de Janeiro: Apicuri, 2015.
______. A Porta Aberta: Reflexões sobre a Interpretação e o Teatro. Tradução de Antonio Mercado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
______. O Ponto de Mudança: Quarenta Anos de Experiências Teatrais. Tradução de Antonio Mercado e Elena Gaidano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.
______. Na Ponta da Língua: Reflexões sobre Linguagem e Sentido. Tradução de José Geraldo Couto. São Paulo: Ed. Sesc-SP, 2019.